Manifesto do Fórum da Rede Centro sobre a moradia

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Manifesto do Fórum da Rede Centro sobre a moradia

 

O Fórum da Rede Centro, composto por trabalhadores e usuários da rede de atenção psicossocial e sociedade civil do centro da cidade de São Paulo, realizou ao longo de 2022 uma série de encontros sobre as políticas de moradia para a população em situação de rua na cidade de São Paulo. Destes encontros foi possível sistematizar uma série de propostas e questões importantes para a superação dos desafios existentes.

É fundamental reforçar que o acesso a moradia, embora seja um direito universal, é historicamente negado à população pobre, em sua maioria negra, no Brasil. A presença e o aumento da população vivendo nas calçadas das metrópoles brasileiras é uma das facetas mais cruéis de uma crise habitacional que tem origem na estrutura de um país racista, que não teve uma política de acesso e democratização da terra.

Sem desconsiderar esse processo histórico de negação de direitos, a moradia também aparece como uma problemática importante para a rede de atenção psicossocial. Os serviços que a compõem não suprem toda a demanda apresentada pelos usuários, dos mais variados perfis: desde crianças e adolescentes, até adultos e usuários de drogas. São muitos os que estão em situação de rua, o que gera e agrava o sofrimento psíquico e dificulta as possibilidades de cuidado.

Diante deste cenário, definimos um conjunto de propostas que seguem elencadas abaixo:

1) Aumentar os serviços existentes da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial): as Unidades de Acolhimento para adultos, crianças e adolescentes e os Serviços Residenciais Terapêuticos, equipamentos que seguem um modelo de cuidado efetivo, pautado na integralidade e na singularidade do sujeito. Pensar em aumentar serviços significa também aumentar as possibilidades de saída dos mesmos, se atentando para as armadilhas das soluções manicomiais: lugares que restringem a circulação das pessoas, fornecendo tudo num mesmo espaço, não contribuem para a emancipação dos sujeitos. E nunca é demais falar: hospital não é moradia.

2) Qualificar os serviços existentes, por exemplo, utilizando a redução de danos para construir regras mais flexíveis nos equipamentos, revendo o número de vagas nos Centros de Acolhida (que tem superlotação de pessoas) para permitir maior atenção a cada acolhido e aumentando o número de profissionais em cada serviço. Os profissionais devem ser qualificados para prestar atendimento humanizado às pessoas, respeitando suas especificidades. Nesse sentido, refugiados, imigrantes e indígenas são populações que necessitam de maior atenção, é necessário aumentar o número de vagas femininas em Centros de Acolhida e garantir o acesso da população trans a esses equipamentos, disponibilizando vagas e banheiros adequados. Ademais, é preciso que haja lavanderia e local seguro e acessível para que os acolhidos possam guardar seus pertences durante sua estadia.

3) Criar novas políticas onde a moradia é permanente, não provisória, e condição primeira para seguir o cuidado. Ao contrário de políticas pautadas na meritocracia, a ideia é ofertar a moradia antes de exigir provas de compromisso ou sucesso com tratamento, apostando que, ao contrário, é a moradia que vai garantir o sucesso do cuidado ao garantir o suporte mínimo da organização cotidiana. Além disso, é fundamental o desenho de um leque diverso de políticas, capazes de atender aos múltiplos perfis de pessoas vivendo nas ruas e calçadas.

4) Promover a intersetorialidade, compreendendo a política de moradia para a população em situação de rua dentro de sua complexidade, de modo que sua formulação e implementação tenha a participação de especialistas, assessorias técnicas e das diferentes secretarias (habitação, saúde, assistência social, cultura e trabalho). O trabalho e a educação formal e informal, por exemplo, são dimensões importantes no campo da saúde mental e de álcool e drogas e no campo da infância e juventude.

5) Estimular a participação social para que as políticas sejam de fato efetivas: é fundamental a participação da sociedade civil e, em especial, da própria população em situação de rua. Para tanto, é fundamental considerar os espaços existentes, como Comitê Pop Rua e organizações que atuam pela garantia de direitos dessa população. O protagonismo dos usuários dentro dos serviços de acolhimento também deve ser estimulado para que o sentimento de “pertença” possa ser criado por aqueles que nestes moram.

É necessário também investigar a situação das concessões de auxílio-aluguel no município que tiveram suspensão para quase 5000 famílias em 2019, a continuidade do Programa de Locação Social e efetivações de projetos habitacionais, respeitando o território existencial de cada sujeito, cujas especificidades devem ser consideradas.

Embora o lugar de morar não deva se confundir com o lugar de tratamento, a necessidade de acompanhamento deve ser considerada em todos os casos conforme as demandas do sujeito: a ideia é que o usuário conte com o auxílio necessário para que possa fazer a gestão de sua moradia. Em outras palavras, a luta por moradia no campo da RAPS inclui dispositivos que tem a função de dar condições para que os usuários se apropriem desse direito.

As considerações formuladas pelo Fórum da Rede Centro visam impactar na discussão sobre políticas de habitação para população em situação de rua e usuários da saúde mental. Seus membros se disponibilizam para maiores debates.

Saudações antimanicomiais, decoloniais, antirracistas e antiproibicionistas.

São Paulo, 20 de janeiro de 2023

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