Estigma

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Da Grécia à sociedade contemporânea, uma ferramenta de poder

Considerado o cientista social norte-americano mais influente do século 20, o sociólogo, antropólogo e escritor canadense Erving Goffman tem em “Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada” (1988), a sua obra mais referenciada.

Segundo o autor, com conhecimento em recursos visuais, os gregos criaram a palavra estigma para apontarem sinais físicos para provar alguma coisa extraordinária ou ruim sobre a moral de quem os apresentava.

Na Era Cristã, ainda mais dois níveis de metáforas foram acrescentados à palavra: o primeiro, referia-se a “sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele”; o segundo, “uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico”.

No final do século 19, afirma o autor, o termo era “usado de forma mais semelhante ao sentido original, grego; porém, mais aplicado à ‘própria desgraça’ do que à sua evidência corporal.” 

Segundo Goffman, “a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias”. Assim, “quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua ‘identidade social'”. 

“O caráter que imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto em potencial – uma caracterização ‘efetiva’, uma identidade social virtual. A categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão chamados de sua identidade social real”, afirma.

Autoestigma, estigma introjetado…

“Estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: assume o estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela não é nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptível por eles?”

Para o autor, há três tipos de estigma distintos.”as abominações do corpo – as várias deformidades físicas”, “as culpas de caráter individual”, como pouca vontade, paixões impossíveis, “tirânicas ou não naturais”, crenças falsas e rígidas, desonestidade, “inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homosexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical”. Por fim, os estigmas “tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família”. 

Em todos os tipos de estigma são encontradas, segundo Goffman, as mesmas características sociológicas: “um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus”. 

Você também sentiu-se estigmatizado/a, discriminado/a, excluído/a? Bem, há que se relevar a época e o contexto social em que o autor fez seu estudo e o publicou. Mas, os estigmas são perceptíveis mesmo na escrita do sociólogo e antropólogo canadense.

Para se relevar época e contexto, é importante a apropriação de distinções fundamentais: a identidade real é aquela que somos para nós mesmos, é a identidade que provamos ter; a identidade virtual é o julgamento do outro sobre como nos vestimos e nos apresentamos, como a gente fala, se comporta e se comunica.

Outra apropriação refere-se à internalização do estigma. Mais adiante, Goffman falará sobre ela, colocando-a como uma lâmina de dois gumes, afirmando que para que o indivíduo estigmatizado sinta o estigma ele precisa ter validado o mesmo em suas concepções. Ou seja, o estigma que afeta a mim é o que me foi introjetado pelo ambiente social no qual fui educado. Ou, ainda, o estigma que me afeta é o que eu usaria para estigmatizar alguém, se fosse o caso. Por isso, o estigma é tão excludente, devastador e aniquilante. 

Os estereótipos e os tipos de estigma aparecerão em todos os autores que estudaram o tema.

Drogas: dos rituais de pertencimento à criminalização

Para Pessoas que Usam Álcool e/ou outras Drogas (PUAD), o estigma é um problema real. As ações e a linguagem de outras pessoas podem fazer com que se sintam indesejáveis e inseguras. Isso pode impedir que elas procurem os seriços de que necessitam, o que pode gerar um impacto negativo na saúde, bem-estar, emprego e resultados sociais.¹

O estigma é um fenômeno social complexo e poderoso que se manifesta com fortes sentimentos e práticas de desaprovação. 

A Organização Mundial da Saúde classificou a dependência de drogas ilegais como a condição de saúde mais estigmatizada do mundo. A dependência do álcool está listada no número 4.

Ao reduzir o estigma, os resultados globais podem ser melhorados, aumentando as taxas de procura de ajuda e diminuindo os impactos negativos sobre os indivíduos.

Para combater de forma sustentável o estigma em torno do uso de drogas ilícitas e da dependência de álcool e outras drogas – e minimizar o seu impacto na saúde física e mental das pessoas – o estigma precisa de ser melhor compreendido. Também precisa ser abordado holisticamente com iniciativas direcionadas aos três tipos de estigma: social, estrutural e autoestigma.

Por que o estigma é importante?

Associado ao álcool e a outras drogas, o estigma contribui para desigualdades na saúde e resultados adversos à saúde. Seus impactos podem incluir aumento do estresse, diferenças reforçadas no status socioeconômico, atrasos na procura de apoio ou tratamento e pessoas que abandonam o apoio/tratamento. 

Poucas pesquisas sobre a experiência da PUAD sugerem que a experiência do estigma pode ser considerada um determinante social da saúde.

É difícil estimar o número exato de pessoas afetadas pelo estigma relacionado ao uso de álcool e outras drogas, ou quantificar os danos que sofrem por isso. Algumas das pessoas em maior risco que usam drogas ilícitas ou são dependentes do álcool, também podem viver sem abrigo ou de forma instável.

Muitas pessoas afetadas pelo estigma ficam em silêncio ou não têm espaço para expressar a sua experiência. Outros relutam em interagir com pesquisadores.

Embora o impacto do estigma possa ser mais prejudicial em comunidades já marginalizadas, a discriminação e o preconceito podem afetar qualquer pessoa. A Estratégia Nacional de Drogas do Governo Australiano para 2017–26 observa:

“As abordagens e respostas políticas destinadas a reduzir os danos causados pelo álcool, tabaco e outras drogas nas populações prioritárias devem ser informadas por evidências à medida que se desenvolvem e devem ser revistas regularmente. É também importante que quaisquer respostas não marginalizem ou estigmatizem ainda mais, inadvertida ou involuntariamente, as pessoas que correm maior risco de sofrer danos relacionados com o álcool, o tabaco e outras drogas.”

O que é estigma?

Estigma é um processo social que ocorre quando uma pessoa é considerada pelos outros como possuindo uma característica ou status que a torna menos aceitável.

O estigma vem do processo social de rotular, julgar e estereotipar. Categorizamos e rotulamos naturalmente porque é uma forma eficiente de processar novas experiências rapidamente. Devido às nossas experiências, preconceitos, fatores de influência e normas sociais, frequentemente atribuímos julgamentos e estereótipos a estes rótulos.

Ser estigmatizado pode reduzir alguém de uma pessoa completa e normal a uma pessoa contaminada e desprezada. O estigma marginaliza e aliena as pessoas a ele sujeitadas.

Estigma associado ao álcool e a outras drogas

Pessoas que fazem uso ou têm têm dependência do álcool e outras drogas lícitas ou ilícitas estão sujeitas a maior estigma do que aquelas em outras condições de saúde, incluindo as com problemas de saúde mental.

Outros fatores-chave que contribuem para o estigma incluem percepção do perigo, informação insuficiente, nível de responsabilidade percebido, diferença de idade, falta de contato e fatores culturais.

Embora seja uma droga, a aceitabilidade social geral do uso de álcool significa que as pessoas que usam álcool, mas não dependem dele, tendem a ser menos estigmatizadas.

O estigma associado a uma droga aumenta, normalmente, com a falta de compreensão sobre ela e como funciona, bem como sobre o seu estatuto jurídico e aceitabilidade social. As pessoas, geralmente, ficam mais confortáveis se encontrarem uma pessoa dependente de álcool do que uma dependente de crack.

O estigma é por vezes utilizado como uma ferramenta social para desencorajar e marginalizar certos comportamentos e, por extensão, as pessoas que os praticam.

Os diferentes níveis de estigma associados às diferentes drogas também se refletem na aprovação pública das abordagens políticas. Por exemplo, mais pessoas apoiam o tratamento coagido para pessoas dependentes de crack e menos pessoas apoiam o tratamento coagido para pessoas dependentes de álcool.

GRAUS de estigma

A regularidade do uso de drogas influencia o grau de estigma que pode ser vivenciado. Uma pessoa que faz uso de cannabis algumas vezes por ano pode ser vista de forma muito diferente de alguém que fuma cannabis diariamente.

O tipo de droga também influencia o grau de estigma. Por exemplo, o associado – incluindo o autoestigma – ao uso do Crystal (metanfetamina) é superior ao associado ao uso de cannabis.

O estigma também varia com os diferentes métodos de consumo. O uso de drogas intravenosas acarreta um estigma significativamente maior do que fumar, cheirar ou ingerir drogas. As pessoas que injetam drogas são frequentemente vistas como “irresponsáveis e perigosas” e estereotipadas como envolvidas em comportamento criminoso para pagar pelo uso de drogas.

Vergonha internalizada, ou autoestigma, também é comumente relatado entre pessoas que injetam drogas. Isso pode aumentar o comportamento de risco (como o compartilhamento de seringas e a automutilação).

Também pode afetar a saúde mental e a autoestima, levando a um maior potencial para o aumento da gravidade da dependência.

TIPOS de estigma

ESTIGMA SOCIAL / PÚBLICO → Estereótipos, preconceitos e discriminaçãO endossados pela população. 

AUTOESTIGMA → Sentimentos internalizados de vergonha, baixa autoestima e baixa autoeficácia.

ESTIGMA ESTRUTURAL → Preconceito e discriminação por políticas, leis e instituições.

CAUSAS do estigma

Os fatores que contribuem para o estigma são complexos. No entanto, existem três tipos principais de problemas: conhecimento, atitude e comportamento.

A linguagem é importante na formação de atitudes. Existem palavras obviamente discriminatórias e desumanizantes, usadas para depreciar e insultar pessoas que usam ou têm dependência de álcool e outras drogas. Isso pode criar uma mentalidade alienante de “nós” e “eles”. Existem também questões linguísticas mais sutis em que as palavras têm conotações negativas, como referir-se a alguém que já não usa drogas ilícitas como sendo/estando “limpo”.

A linguagem também pode afetar a forma como uma pessoa é tratada por profissionais médicos em um ambiente clínico. Mesmo profissionais de saúde mental altamente treinados, quando expostos a uma mudança sutil na linguagem (“adicto” versus “usuário de substâncias”), aplicam julgamentos e atitudes diferentes em suas respostas.

Defensores da linguagem que prioriza a pessoa reconhecem que a ordem das palavras, e não apenas as palavras usadas, afeta as imagens geradas sobre a pessoa ou grupo que descrito.

Estruturas e procedimentos de comunicação no sistema de saúde (por exemplo, sistemas de triagem) aumentam o estigma das pessoas que usam drogas. Isso foi demonstrado em um estudo que incluiu pessoas com diagnóstico positivo para hepatite C. 

Ter esse diagnóstico mudou a forma como a pessoa vivencia o sistema de saúde. No estudo, membros da equipe admitiram que mantinham uma lista de nomes de pessoas que suspeitavam que faziam uso de drogas. Quando reconheciam o nome de um paciente que fazia uso de drogas, tendiam a desconsiderar os sintomas do paciente.

Mais de um estigma

As PUAD podem estar sujeitas a estigmas adicionais, resultando em camadas sobrepostas de discriminação. Estigmas adicionais podem resultar da identidade social percebida de uma pessoa.

A identidade social provém de características como classe, identidade de gênero, orientação sexual, etnia, idade, história de interações com os sistemas de justiça ou de proteção infantil, crenças religiosas ou espirituais, estado de saúde mental, deficiência/capacidade, tipo de corpo, e qualificações educacionais, entre outras.

Todas essas características podem ter vários graus de estigma associados a elas. 

Quando uma pessoa tem múltiplas identidades sociais estigmatizadas, a sua experiência de estigma, discriminação e exclusão pode ser intensificada. 

Por exemplo, uma pessoa que depende de álcool e outras drogas pode ser estigmatizada pela sua dependência. Se essa pessoa também não for alfabetizada, poderá ser ainda mais estigmatizada. A experiência de exclusão dessa pessoa pode ser ainda maior se ela também tiver problemas de saúde mental.

O estigma e as identidades sociais são complexos. Por isso não existem regras rígidas e rápidas sobre como será a experiência de uma pessoa.

 

Impacto do estigma

Impacto do estigma social/público
• O estigma social leva à segregação social e à exclusão.
• A alienação de pessoas que usam ou que têm dependência de álcool e outras drogas pode agravar a saúde física e mental, e os impactos podem ser de longo alcance.
• O estigma social também pode ser um impulsionador parcial da criação de subculturas. 

Impacto do estigma estrutural
• As políticas e as estruturas institucionais podem restringir intencionalmente ou não as oportunidades das pessoas que usam ou têm dependência de álcool e outras drogas.
• As atitudes dos profissionais de saúde também podem influenciar a qualidade geral do tratamento recebido por qualquer paciente.
• Atitudes negativas podem resultar na redução do acesso a avaliações de saúde precisas.

Impacto do autoestigma
• Algumas PUAD têm medo de serem tratadas de forma diferente, têm expectativas de serem demitidas ou rejeitadas e experimentam sentimentos de vergonha internalizada e perda de autoestima. Isso pode fazer com que as pessoas atrasem o tratamento, o que pode levar ao aumento dos danos causados pelo álcool e por outras drogas.

Impacto na família e amigos
• O impacto do estigma na família de pessoas que usam ou têm dependência de álcool e outras drogas será diferente para cada família.
• O estigma dentro das famílias pode degradar relacionamentos, marginalizar ainda mais a pessoa que vivencia uma dependência de álcool ou outras drogas e reduz o apoio social restante que ela possa ter ou vir a ter. 

 

O que podemos fazer em relação ao estigma?

Atitudes, conhecimento e comportamento são os três principais problemas que levam ao estigma. Eles interagem e influenciam uns aos outros de maneira complexa. Alterar um deles pode ou não alterar os demais. 

O conhecimento, as atitudes e o comportamento também ocorrem e são moldados pelo contexto de fatores ambientais externos, tais como leis, políticas e normas sociais, como na figura abaixo (Figura 1, ADF Stigma Background paper; pg 9):

As características individuais de conhecimento, atitudes e comportamento também influenciam esses fatores externos.

As mudanças na atitude pública em relação ao uso de cannabis, por exemplo, resultaram na descriminalização e legalização em vários países. A legislação sobre drogas também é fortemente influenciada pelas percepções da sociedade sobre as diferentes drogas e, por extensão, sobre as pessoas que fazem uso delas. 

Dada a interação entre conhecimentos, atitudes, comportamento e ambiente, é provável que uma abordagem holística a longo prazo demonstre o maior impacto na redução do estigma. Essa abordagem poderia envolver, simultaneamente:

  • mudar o ambiente (normas sociais, políticas e discurso público);
  • aumentar o conhecimento (reduzir a ignorância);
  • mudar atitudes (reduzir preconceito) para mudar comportamentos (reduzir a discriminação).

Estigma em relação ao HIV/aids e às pessoas vivendo com HIV ou aids

“O estigma, a discriminação e a negação estão longe de ser construções individuais”, afirmam Parker & Aggleton (2021) em “Estigma, Discriminação e AIDS”, originalmente publicado em 2001 e hoje uma das principais referências no estudo do estigma em HIV/aids.

Para os autores, além do alto grau de diversidade e complexidade intercultural, “um dos fatores mais importantes que limitam o nosso entendimento desses fenômenos até agora poderá ser menos a sua complexidade inerente do que a relativa simplicidade das estruturas conceituais existentes”.  

O problema, para Parker & Aggleton, “exige de nós que abramos esta categoria analítica – e que repensemos as direções que ela coloca no nosso trabalho de pesquisa e intervenção”. Para eles, a ênfase que o trabalho de Goffman deu ao estigma como um ‘atributo depreciativo’, “deu à posse de uma ‘diferença indesejável’ que leva a uma ‘identidade deteriorada’. Assim, afirmam:  

“… o fato de que a estrutura de Goffman tenha sido utilizada em muitas pesquisas sobre HIV/AIDS como se o estigma fosse uma atitude estática e não um processo social em constante mutação limitou seriamente as maneiras pelas quais se têm abordado a estigmatização e a discriminação em relação ao HIV e à AIDS” (PARKER & AGGLETON, 2021). 

No entanto, os autores sublinham que embora as referências ao estigma e à estigmatização em HIV e AIDS reconheçam o trabalho de Goffman como precursor intelectual, “a discussão mais próxima da discriminação raramente se enquadra em qualquer tradição teórica”.

Conforme os autores, “o significado da discriminação normalmente é tomado como já dado, como se já tivesse sido definido ou fosse óbvio com base no uso comum”.

Na natureza do estigma, Parker & Aggleton consideram “importante reconhecer que o estigma e a estigmatização se formam em contextos específicos de cultura e poder”, é igualmente importante “entender como o estigma é usado pelos indivíduos, comunidades e pelo Estado para produzir e reproduzir desigualdade social”. 

Por fim, “é importante reconhecer como o entendimento do estigma e da discriminação nestes termos encoraja o foco sobre a economia política da estigmatização e suas ligações à exclusão social”, como na figura abaixo:

“O estigma é usado por atores sociais reais e identificáveis que buscam legitimar o seu próprio status dominante dentro das estruturas de desigualdade social existentes.”

Parker e Aggleton afirmam que “para soltar as amarras da estigmatização e da discriminação que prendem os que estão sujeitos a elas é preciso questionar, portanto, as próprias estruturas de igualdade e desigualdade em qualquer cenário social”.

 

A medusa da aids e seus estigmas

Depois de se curar de um câncer, a escritora e ensaísta norte-americana Susan Sontag escreveu “A doença como metáfora”, livro no qual conta sua experiência com a doença, da perspectiva de uma mulher intelectual nos anos 70 do século 20, nascida e criada em Nova York, um dos epicentros da pandemia de aids.

No final da década de 1980, depois de cuidar de amigos doentes, posteriormente vítimas fatais da aids, ela escreveu “Aids e suas metáforas”. Em pouco mais de cem páginas, Sontag busca metáforas que possam responder a tamanho estigma. 

Uma das metáforas é a bélica, cujos argumentos são usados em campanhas de saúde, como por exemplo as campanhas de vacinação ou mesmo o “dia de luta contra…”, “dia D de vacinação contra a poliomielite”, ou mesmo as explicações de como um vírus “ataca” o organismo, se  reproduzindo para “bombardear” as células de defesa… E, até mesmo algumas estratégias que impedem o “avanço do inimigo invasor”.

Segundo escreveu, durante toda a história da humanidade, as sociedades tendem a escolher preferencialmente uma doença para transformá-la na própria expressão do mal. Assim, toda a mágoa, ressentimento, frustração e rancor daquela sociedade é depositado sobre o/a representante do mal e seus afetados seriam uma espécie de “prova da disseminação do mal”. Para a ensaísta, foi assim com a lepra, doença chamada de hanseníase apenas no Brasil. Foi assim também com o que foi chamado “peste negra”, com a sífilis, a tuberculose, a “gripe espanhola”, a aids no século 20 e a covid-19, no século 21.

No caso da aids, assim que o Centro de Controle de Doenças (CDC), em Atlanta, nos EUA, anunciou, em 5 de junho de 1981, as mortes de cinco jovens homens homossexuais até então saudáveis, diagnosticados com pneumocystis carinii, citomegalovírus e sarcoma de Kaposi, o estigma foi instaurado. Primeiro porque, segundo a nota editorial do boletim semanal de morbidade e mortalidade do CDC, aqueles cinco jovens homens homossexuais não se conheciam mas, “alguma coisa em seu estilo de vida” os havia levado a contrair aquela série de doenças mais comuns em pessoas mais idosas, todas delatoras de um sistema imunitário combalido pelos ataques da doença.

 

4 H, uma fábula moderna

Na primeira década do século 21, o pesquisador brasileiro Francisco Inácio Bastos escreveu “Aids na terceira década”, um pequeno livro para a Coleção Temas em Saúde, da Editora Fiocruz. Nele, o autor argumenta que “a fábula dos 4 Hs foi tecida por epidemiologistas equivocados”. Os 4 H, como ficaram conhecidos os grupos populacionais apontados de terem maior risco de contrair a doença: homossexuais, haitianos, hemofílicos e heroinômanos.

“As raízes dessa fábula contemporânea remetem ao clima de caça às bruxas, bruxas essas plasmadas pelos próprios fabuladores, talvez em busca de apoio a uma visão maniqueísta do mundo: de um lado, os saudáveis, do outro, os doentes, estes últimos, por seu turno, subdivididos em: ‘vítimas inocentes’ e (supostos) ‘culpados’.”

Adiante, Bastos é categórico: “ainda que não reste dúvida de que momentos de crise e dúvida nos colocam em dilemas que, no calor da ocasião, não é possível compreender e enfrentar, cabe assinalar que as ferramentas conceituais e metodológicas necessárias à correta análise da dinâmica da epidemia que então emergia já existiam e foram empregadas de forma apropriada por um pequeno grupo de pesquisadores.”

Na construção da fábula do H1, os homossexuais, a justificativa: “a síndrome seria uma afecção exclusiva de homens gays, no que viria a ser popularmente conhecido como ‘câncer gay’, ou, ainda, numa vertente aparentemente mais sofisticada, a então denominada GRID (gay-related immunodeficiency ou ‘imunodeficiência relacionada aos gays’, ou ainda, numa tradução ao pé-da-letra, ([relacionada a] ‘ser gay’)”.

Bastos afirma que a partir de então, a humanidade se dividiria entre “gays, sob o risco absoluto de contrair o HIV/Aids, e não-gays, a salvo do misterioso mal. Enquanto isso, a epidemia avançava velozmente na África subsaariana na ausência de qualquer cena gay”.

Com o nome da doença relacionada aos gays, o “câncer gay” ou a “peste rosa”, como também rotulou a mídia brasileira, e o falso conhecimento de que a transmissão se dava exclusivamente pela relação sexual anal, as ações de prevenção foram comprometidas por décadas com a suposta falta de vulnerabilidade de homens heterossexuais ao HIV transmitido a partir de mulheres infectadas. Aí o estigma mostra seu segundo gume.

“O Haiti é aqui” e em toda a América. Golpes de Estado, violência, desemprego e perseguição política, entre outros fatores contextuais, transformaram o Haiti um grande exportador de mão-de-obra barata devido ao desalojamento de famílias inteiras pelos conflitos sociais que, para Bastos, foram essas “desigualdades que estabeleceram redes sociais fortemente interativas, que puseram em interação haitianos e norte-americanos. E […] onde há interações marcadamente desiguais entre seres humanos, estabelecem-se circuitos de exploração sexual, sexo comercial, além de distância e mesmo ocultação deliberada face às instâncias formais, entre elas, a saúde pública e a medicina de um modo geral”. Assim, “os haitianos se tornaram uma categoria em si, supostamente afetada pela Aids devido a uma preferência velada do HIV… por haitianos!”

O mercado do sangue no mundo está na constituição do terceiro H. Segundo Bastos, “os denominados ‘doadores profissionais’ fornecem sangue, em troca de uma pequena compensação financeira.” Conforme o autor, esses doadores eram, “em sua imensa maioria, recrutados dentre os segmentos mais pobres e marginalizados de cada sociedade, congregando, por exemplo, mendigos e usuários de drogas injetáveis”.

Para o autor, pessoas que fazem uso de drogas formaram um “falso” quarto H. 

“… saltam aos olhos os erros e preconceitos referentes aos usuários de drogas injetáveis, que foram reduzidos a uma única modalidade de consumo por via injetável, a injeção da heroína – o quarto H. Um dos equívocos mais curiosos neste caso refere-se à própria droga injetada. Possivelmente devido ao estigma longamente associado à heroína nos locais onde seu consumo é mais prevalente […] foi a ela conferida um papel indevido, por diversas razões.” (BASTOS, 2006)

Bastos afirma que “uma fração” de pessoas que faziam uso de cocaína foi ignorada: “os usuários de drogas cujas taxas de infecção pelo HIV são as mais elevadas, devido a uma série de fatores, que a pesquisa se encarregou de esclarecer posteriormente”. 

“Caso as práticas dos usuários de cocaína injetável tivessem sido adequadamente observadas e descritas, saber-se-ia que seu padrão de uso […] está fortemente associado ao compartilhamento de agulhas e seringas e, com isso, à transmissão do HIV.” 

 

FONTES:

GOFFMAN, Erving. Estigma – Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª Edição. Editora Guanabara. Rio de Janeiro, 1988.

PARKER, Richard; AGGLETON, Peter. Estigma, Discriminação e AIDS. 2ª Edição. Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em https://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2021/05/livro-digital-final-ESTIGMA-DISCRIMINA%C3%87%C3%83O-E-AIDS-pagina-espelhada-10052020.pdf. Acesso em dez/2023.

Alcohol and Drug FOUNDATION. Alcohol and other drugs: Estigma. A Background Paper. Alcohol and Drug Foundation. Austrália, 2019.

BASTOS, Francisco Inácio. AIDS na Terceira Década. Editora Fiocruz. Rio de Janeiro, 2006.

SONTAG, Susan. AIDS e suas metáforas. Companhia das Letras. São Paulo, 1989.


¹ Parte do texto sobre o estigma ao álcool e a outras drogas, bem como ao estigma que sofrem as pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas foi traduzido e adaptado de Alcohol and other drugs: Estigma. A Background Paper. Alcohol and Drug Foundation. Austrália, 2019

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