É de Lei lança livro sobre cultura, juventudes e redução de danos

postado em: blog | 0

O livro Cultura, juventudes e redução de danos, realizado pelo Centro de Convivência É de Lei vai ser lançado dia 13 de novembro (sexta-feira), a partir das 18h na Matilha Cultural, em evento que contará também com a exibição do minidocumentário Quase livres e roda de conversa. O livro é resultado de ações desenvolvidas por um projeto selecionado pelo Edital Viva Jovem, cujas metas contemplam ações da sociedade civil no trabalho com jovens em situação de violência para promoção de direitos e diminuição de vulnerabilidades.

Desde que se iniciaram no Brasil as ações na perspectiva da redução de riscos e danos associados ao uso de drogas, existe certa polêmica sobre como seria possível e quais seriam os limites éticos no trabalho com adolescentes e jovens nesta perspectiva”, observa o texto de apresentação do livro. O quanto é lícito oferecer insumos como cachimbos e seringas aos adolescentes e crianças que usam drogas em situação de rua? É necessário separar esse público dos adultos?

Pensando em questões como essas e no que é a redução de danos a partir do diálogo com o usuário e do pragmatismo para se encarar a realidade e a qualidade de vida para além da saúde, os textos do livro apresentem algumas experiências inovadoras e transversais de redução de riscos e danos com jovens em contextos de vulnerabilidade.

         

Leia aqui o primeiro capítulo do livro Cultura, juventudes e redução de danos:

Juventudes e redução de danos

Por Bruno Ramos Gomes, Isabela Umbuzeiro, Nathália Oliveira e Pedro Brandão

A ideia hegemônica de juventude baseia-se em uma formulação da Modernidade, a partir da reorganização da sociedade ocidental pós-Revolução Industrial no século XIX, em momentos diferentes em cada país do Ocidente.

Conforme os processos de produção foram se sofisticando, surgiu a necessidade de maior tempo de dedicação aos estudos para inserção no mundo do trabalho. É importante lembrar que até então, era muito comum encontrarmos crianças trabalhando em diversos setores, situação que só se modificou por conta da reestruturação do trabalho e pela conquista de diversos direitos sociais.

Atualmente, a infância e certo período da juventude são garantidos por lei para exclusivo desenvolvimento e formação escolar como preparo para a vida adulta e aprendizado de uma profissão. Vale ressaltar que, se algum dia existiu essa transição linear e escalonada, ela não ocorreu sempre e em todos os grupos sociais, e até o presente momento existem muitas possibilidades e modos de inserção no “mundo adulto”.

Ao longo do século XX, a noção de juventude foi aos poucos sendo elaborada, pois por muito tempo consistiu basicamente em critérios como: idade cronológica, mudanças físicas e psicológicas. Também foi nesse século que se estabeleceu o entendimento de juventude como uma identidade cultural em que surgem novas maneiras de colocar-se no mundo e distintos modos de questioná-lo.

Essas características marcam a concepção de juventude como a idade da rebeldia, principalmente após o surgimento do rock, o movimento hippie e os constantes envolvimentos políticos em causas que mobilizaram o século XXLogo, uma definição etária para determinar o que é juventude se torna obsoleta e começa a ser ampliado o leque de categorizações desse segmento.

Atualmente, no Brasil, vivemos uma vasta estratificação social, um intenso processo de urbanização, o surgimento de diferentes setores econômicos, novas tecnologias, novos meios de comunicação e uma enorme diversidade cultural. Esse contexto demanda que se pense a juventude levando em consideração aspectos biológicos, culturais, históricos, sociológicos, psicológicos, estatísticos, filosóficos e antropológicos.

Nesse sentido, o Brasil deu um passo importante ao instituir o Estatuto da Juventude em 2013, que dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude – SINAJUVE. Tal lei compreende uma multiplicidade de juventudes com singularidades de gênero, classe, cor, região de origem e cultura, bem como passa a considerar jovem todas as pessoas que têm até 29 anos.

A ampliação do conceito de juventude não acaba com as contradições de uma sociedade complexa, mas ajuda a reconhecer as diversidades dessa população. Ações como essas podem ajudar a direcionar as políticas públicas no sentido de diminuir as desigualdades observadas nesta população.

Centro de Convivência É de Lei e o Projeto Cultura, Juventudes e Redução de Danos

O Centro de Convivência É de Lei é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que atua há 16 anos no centro de São Paulo desenvolvendo ações que buscam diminuir vulnerabilidades relacionadas ao uso de drogas através da promoção de direitos sociais e o desenvolvimento de estratégias que levem a reflexões sobre o uso de drogas e o autocuidado destes usuários. Nos últimos anos, ampliamos nossas frentes de atuação desenvolvendo ações interdisciplinares e transversais incluindo principalmente a educação em Direitos Humanos e ações culturais, visando intervir – de forma mais incisiva – nos contextos que envolvem as pessoas que usam drogas. As práticas culturais e artísticas têm composto esse conjunto de estratégias de diferentes formas.

Nosso público é predominantemente negro ou pardo. Muitos se encontram em situação de rua, possuem baixa escolaridade, fazem uso cotidiano de drogas, alguns são egressos do sistema prisional e estão envolvidos em situações de violência direta ou indireta. Tal contexto faz com que sofram diversas situações de violência, tanto em relações pessoais quanto nas relações com o Estado.

Olhando de perto, é possível afirmar que, se não fosse por uma coincidência etária, grande parte deles nunca viveu e não viverá a identificação social atribuída à juventude, pois muitos já nasceram tendo que dar conta da própria sobrevivência. Nasceram e logo já estavam no “mundo adulto”, sem tempo para viver o desenvolvimento da infância e juventude. São sujeitos que, em pleno século XXI, não compartilham dos mesmos direitos sociais da modernidade, apenas sofrem com as complexidades dessa nova sociedade. Com a infância e juventude sequestradas, não ganham nem o direito de sonhar. É com esses jovens – ou com adultos que tiveram juventudes como essa – que o É de Lei trabalha.

As relações com as drogas acontecem de maneiras distintas a depender dos vários contextos dentro de um mesmo território – no nosso caso, o centro de São Paulo. Essa variação nos leva a adotar estratégias diferentes nos ambientes que trabalhamos nesse projeto: um contexto de uso de drogas, na região do bairro da Luz denominada cracolândia, um serviço de acolhimento e convivência aberto a comunidade em geral, mas com intensa participação de pessoas em situações de vulnerabilidade social e dois serviços de medidas socioeducativas em meio aberto, que atendem jovens de até 21 anos em conflito com a lei.

Diferenciar esse público é fundamental. Cada jovem passa por situações distintas de acordo com o contexto em que vive, variando a forma como age no mundo e as possibilidades de acesso a direitos e serviços. Além do contexto, é importante considerar as diferentes relações que o sujeito estabelece com o uso de drogas: experimentação, uso eventual, abuso, dependência ou, ainda, relações que não dependem do uso em si, como, por exemplo, o trabalho no tráfico de drogas, dentre outras.

A questão das drogas habita o campo da moralidade e da ilegalidade. Assim, as pessoas que desenvolvem algum tipo de relação com essas substâncias muitas vezes são estigmatizadas por isso, principalmente aqueles em maior vulnerabilidade social, com baixo poder aquisitivo, pouca possibilidade de formação e vivendo situações de segregação.

É muito importante levar em consideração que uma das principais vulnerabilidades enfrentadas por essa população refere-se às violações de direitos. Por isso, para desenvolver ações, é necessário observar nossos próprios preconceitos, evitando a reprodução de estigmas. Pensar práticas de redução de danos para esse público é desenvolver um conjunto de ações que consiste em constituir vínculos, propiciar espaços de escuta e acolhimento, proporcionar espaços reflexivos sobre violações de direitos, distribuir insumos para uso de drogas em contextos específicos, construir estratégias que promovam visibilidade às violações de direitos no território em que acontecem, construir estratégias que revertam os papéis de violado para protagonista de ações positivas, além da disseminação de informações sobre saúde e autocuidado.

Quanto mais informações tivermos sobre o contexto que estamos lidando e a quais vulnerabilidades o grupo está exposto, teremos mais segurança para a escolha das estratégias que utilizaremos. As estratégias escolhidas devem servir para atender as necessidades do contexto e não das nossas expectativas, pois dessa maneira teremos mais chance de aproximação do nosso público e facilidade na constituição do vínculo, princípio fundamental para a prática de RD.

No contato diário com os jovens nos diversos contextos, vemos que as dificuldades da vida estão de alguma forma associadas ao uso de drogas, mas nunca numa relação de causa e efeito e raramente definindo-se claramente como dependência. As situações arriscadas em que as drogas estão presentes vão do uso abusivo aos riscos constantes de morte no envolvimento com o mercado clandestino de drogas.

Assim, torna-se necessário compreender o universo simbólico e os elementos que compõem a subjetividade dos sujeitos envolvidos. Entendemos a cultura em sua dimensão ampla, que envolve as formas de sentir, pensar e fazer que habitam e constituem, de forma heterogênea e singular, esses grupos e sujeitos.

O contexto da região central, nos diferentes espaços em que as ações deste projeto se deram, agrega pessoas de origens distintas, que trazem em suas memórias e corpos experiências e saberes que se misturam. Uma subjetividade complexa, que não se apoia necessariamente na marca de um grupo específico. Por um lado, essa característica dificulta processos de reconhecimento e valorização da cultura própria, movimento comum em comunidades periféricas, que, por mais que tenham precariedade de acesso a serviços e estruturas básicas, podem viver um sentido compartilhado de comunidade. Essa cultura do centro de uma das maiores cidades do mundo é múltipla e, por vezes, acaba vivendo processos de perda de sentido da existência comunitária. Por outro lado, essa multiplicidade promove experiências de misturas e inovações, gerando encontros inéditos e singulares, escapando das generalizações de um determinado grupo social.

Nos diferentes espaços de atuação da organização, é comum observar que seres humanos acabem se transformando apenas em usuários de drogas ou usuários de serviços, pessoas em situação de rua ou infratores, existindo ainda adjetivos pejorativos para estas categorias, como noias, zumbis ou mendigos.

Esses sujeitos, para além de sua relação com as drogas, trazem saberes e marcas próprias, muitas vezes invisíveis aos especialistas interventores. A partir desse primeiro olhar crítico, são propostas ações estéticas no âmbito da cultura, com o intuito de promover espaços férteis para processos de reconhecimento e valorização da singularidade de cada um, fazendo com que essas marcas possam ser vividas enquanto diferenças que contribuem para a diversidade e os espaços comuns, contribuindo para a desconstrução de estigmas e criando novos lugares.