Esta é uma tradução com adaptações para o contexto brasileiro do capítulo VI do Guia Prático sobre Respostas Inclusivas e Focadas em Direitos à COVID-19 nas Américas publicado pela Organização dos Estados Americanos (OEA).
Tradução por Janaina Rubio Gonçalves
As Pessoas LGBTIQ e a COVID-19 nas Américas
Elaborado por Andrés Scagliola, Politólogo e especialista do governo, presidente do Grupo de Trabalho do Protocolo de San Salvador.
A pandemia de coronavírus se instala na região mais desigual do mundo. Isso não pode ser ignorado. Coexiste nas Américas fortes diferenças socioeconômicas e diferentes grupos em situações de vulnerabilidade com base em diferentes eixos de discriminação, que apresentam enormes lacunas no acesso aos direitos sociais.
Diante disso, os Estados, por um lado, podem responder reproduzindo essas desigualdades. Ou, por outro, podem aproveitar esta oportunidade para responder de acordo com os padrões internacionais e interamericanos de Direitos Humanos (doravante, DDHH) – alinhados com seus compromissos internacionais -, buscando reverter as lacunas existentes a partir do combate as desigualdades e as discriminações pré-existentes.
Responder a partir de uma perspectiva de DDHH[1] implica incorporar nesta resposta os princípios de indivisibilidade e interdependência dos mesmos. Não basta, embora seja central, agir em relação ao direito à saúde, mas também deve ser construída uma resposta abrangente, incluindo os direitos à educação, trabalho e seguridade social; alimentação adequada, moradia e serviços básicos (como parte do direito a um ambiente saudável).
Essa mesma perspectiva deve ser levada em consideração no momento de definir as medidas de distanciamento social.[2]
É razoável pensar que uma resposta baseada nessa perspectiva só pode ser construída com base em um Plano de Emergência ou Contingência, com transparência nas informações e garantindo, tanto quanto possível a participação social, e não com base em uma sucessão de medidas acumulativas e muitas vezes contraditórias, colocando em foco as pessoas em situações históricas de violação de direitos, entre outras, pessoas LGBTIQ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersex e queer).
- A SITUAÇÃO DA POPULAÇÃO LGBTIQ NAS AMÉRICAS
A população não heterossexual foi estimada em 5% a 10% da população. A falta de incorporação das categorias de características sexuais, orientação sexual, identidade e expressões de gênero em registros oficiais, pesquisas e censos dificulta as estimativas[3]. Da mesma forma, o fato de existirem países na região do Caribe que ainda criminalizam a homossexualidade e que, mesmo em contextos de legalidade e até reconhecimento da plena igualdade de direitos, o estigma social persiste, dificulta a segurança de qualquer instrumento de medida.
Uma pequena parte da população total é trans (travesti, transgênero, transexual)[4]. Se trata de um grupo pequeno, mas se torna importante devido à extrema situação de exclusão social em que vive. De fato, as Américas é a região mais violenta do mundo, com pessoas trans. A falta de acesso e gozo de seus DDHH, bem como a violência, que em centenas de casos por ano termina em morte, faz com que sua expectativa de vida seja aproximadamente metade do restante da população.
- JUSTIFICATIVA
O estigma e o preconceito representam para as pessoas LGBTIQ uma barreira, muitas vezes, intransponível aos seus direitos. Nada mais acontece com o direito à saúde.
Homens gays (e pode ser estendido a todos os homens que fazem sexo com homens) e mulheres trans estão entre os grupos prioritários na resposta ao HIV, devido à sua alta representação entre as pessoas que vivem com o vírus em termos percentuais.
O estigma em torno do HIV (que em alguns contextos também contribui para a criminalização) faz com que muitos não tenham acesso a exames e, consequentemente, a tratamentos para poder conviver com o vírus como uma doença crônica. Lembre-se de que as pessoas com HIV que não acessam tratamentos e, portanto, a indetectabilidade do vírus no sangue e o controle de seu Cd4, estão mais expostas à morte por coronavírus.
Mas a lacuna no acesso à saúde não se limita a isso. Em toda a região, as dificuldades de tornar a orientação sexual abertamente visível levam a diagnósticos e estratégias de cuidado inadequados para essa população. Além disso, a atenção as pessoas trans é absolutamente deficiente em relação a questões de saúde específicas (tratamentos hormonais, complicações por uso de silicone líquido para modificar seus corpos de acordo com os padrões estéticos femininos hegemônicos, exposição a doenças sexualmente transmissíveis no caso de profissionais do sexo, consequências da violência e abuso diários, depressão devido à discriminação diária, são alguns desses temas). A estratégia compensatória de gerar alguns serviços de saúde “amigáveis”, fundamentalmente por parte das organizações e coletivos sociais LGBTIQ e por alguns Estados, não consegue preencher as enormes lacunas presentes nessas populações.
Compreendendo a interdependência e indivisibilidade do direito à saúde com outros direitos sociais, a situação se torna muito mais complexa. De acordo com as poucas fontes de informação existentes em vários países da região, as pessoas LGBTIQ (e, em particular, as pessoas trans) apresentam grandes lacunas no acesso ao direito à alimentação, moradia e serviços básicos, à educação, trabalho e seguridade social.
Finalmente, você não pode olhar para a população homossexual, bissexuais e trans de nossos países sem um olhar interseccional. As pessoas LGBTIQ são atravessadas por outros eixos de desigualdade que as expõem a situações de discriminação particularmente complexas nessas interseções. Para mencionar algumas situações intersetoriais particularmente relevantes diante dessa pandemia: profissionais do sexo trans que – no contexto da legalidade ou ilegalidade de sua atividade – ficaram sem renda econômica; pessoas homossexuais e trans que vivem com HIV sem confirmação de seu status sorológico ou sem acesso a anti-retrovirais; Os migrantes LGBTIQ que frequentemente encontram falta de apoio de seus compatriotas nos países anfitriões devido à sua cultura homofóbica ou ainda enfrentam riscos de deportação devido ao seu status irregular, o que os impede de acessar serviços básicos de saúde; idosos homossexuais com menos redes de apoio social do que o restante de sua geração (a solidão em homens gays é extrema); pessoas homossexuais e trans privadas de liberdade sujeitas a situações cotidianas de abuso; Pessoas LGBTIQ com deficiência, como pessoas surdas, com dificuldades de acesso a informação; ou crianças e adolescentes que, devido à sua sexualidade inesperada, enfrentam violência por parte de seus pais e parentes, bem como de suas comunidades.
- INSTRUMENTOS CHAVE NO MARCO JURÍDICO INTERAMERICANO
Juntamente com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 (artigo 11) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (artigos 26, sobre desenvolvimento progressivo e 29, sobre sua interpretação à luz de outros tratados internacionais), o Protocolo de San Salvador de 1988, sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (que em seu artigo 10 refere-se ao direito à saúde) faz parte da estrutura básica para a construção de uma resposta à pandemia de coronavírus baseada em padrões de DDHH na região[5]. Isso, com base no artigo mencionado do Protocolo, refere-se a considerar a saúde como um bem público (número 2), para todos (número 2, literal b) e observar os grupos sociais mais vulneráveis (número 2, literal f)[6].
Nesse cenário, os Indicadores de Progresso do Protocolo de San Salvador, construídos sob a perspectiva dos DDHH pelo Grupo de Trabalho do Protocolo de San Salvador, o comitê de monitoramento deste instrumento vinculativo, são uma ferramenta útil para monitorar as respostas dos Estados Partes na pandemia. Os 85 indicadores do direito à saúde, por exemplo, monitoram três categorias transversais: a recepção do direito (e a incorporação a normativa interna dos compromissos internacionais); o contexto financeiro e o compromisso orçamentário para garantir esse direito; bem como as capacidades estatais geradas. Da mesma forma, destaca através de uma bateria de indicadores, princípios transversais dos DDHH, tais como: igualdade e não discriminação; o acesso à justiça e à informação e participação.
O Grupo de Trabalho do Protocolo de San Salvador, de maneira oportuna à luz da pandemia de coronavírus, gerou uma proposta para analisar indicadores de progresso – também o direito à saúde – a partir de uma perspectiva transversal LGBTI[7]. Hoje, tanto para a sociedade civil quanto para os Estados Partes, é uma ferramenta relevante para que a resposta a esse desafio reafirme o princípio básico de que nascemos livres e iguais em dignidade.
No mesmo sentido de proteção dos direitos das pessoas LGBTIQ e dos idosos, os Estados devem avançar na assinatura e ratificação das convenções interamericanas Contra Todas Forma de Discriminação e Intolerância e Sobre Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas, que mencionam explicitamente a orientação sexual, identidade e expressões de gênero como razões proibidas de discriminação.
- RECOMENDAÇÕES: ASPECTOS RELEVANTES PARA A RESPOSTA A COVID-19
Como dito anteriormente, a resposta à pandemia do coronavírus exige um plano, além dos prazos impostos pela crise e da complexidade da consulta que o distanciamento social implica. Isso, em relação às pessoas LGBTIQ, deveria cobrir pelo menos três eixos prioritários: informação, suporte e assistência.
Em primeiro lugar, garantir informação relevante, oportuna e pertinente às pessoas LGBTIQ. É importante gerar conteúdos com informações relevantes – com uma perspectiva intersetorial -, dando conta de desigualdades que agravam especialmente situações de violação de direitos em pessoas LGBTIQ (mencionadas acima). Muitas vezes, essa informação não está disponível devido à persistência de olhares heteronormativos nos meios de comunicação de massa.
Em segundo lugar, juntamente com as informações, gerar estratégias de suporte oportunas para as pessoas LGBTIQ à distância. Uma modalidade adequada é a abertura de uma linha telefônica para aconselhar e orientar as pessoas em relação aos recursos e serviços, com base em um protocolo definido e articulado com instituições públicas e organizações sociais.
Em terceiro lugar, garantir assistência direta às pessoas LGBTIQ – especialmente as pessoas trans – mais vulneráveis, garantindo o direito à alimentação e à saúde através do fornecimento de produtos de higiene e alimentos de forma direta ou através de transferências monetárias. Da mesma forma, é importante promover a criação de redes de apoio social junto a organizações e coletivos sociais, com atenção especial a idosos, pessoas que vivem com HIV, pessoas trans, migrantes, crianças e adolescentes LGBTIQ expostos a situações de violência doméstica.
Para finalizar, é fundamental lembrar tanto os Princípios de Yogyakarta (2006) como Yogyakarta mais 10 (2017), que fornecem uma leitura transversal desde a diversidade sexual e de gênero da normativa internacional de DDHH e os compromissos assim assumidos pelos Estados. , bem como o recente “Pronunciamento de Especialistas Independentes, Relatores Especiais e Grupos de Trabalho das Nações Unidas sobre COVID-19“, que inclui pessoas LGBTIQ.
Não pode haver outro propósito na resposta a esta pandemia do que ninguém ficar para trás.
[1]Da mesma forma, a resposta deve ter foco em gênero para entender o impacto desigual da pandemia, não apenas na saúde, mas também no conjunto de acesso e gozo de direitos humanos fundamentais em homens e mulheres. Por exemplo, a resposta pode ter um forte impacto na carga de cuidados em casa, bem como em situações de violência de gênero.
[2]Veja Princípios de Siracusa na limitação de direitos fundamentais.
[3]No Uruguai, casais do mesmo sexo são pesquisados pela Pesquisa Nacional por Domicílios (embora a sub representação das mesmas na medição seja palpável) e somente na próxima rodada de censos será incluída – se as condições políticas não a alterarem – a categoria “identidade de gênero”, por mandato da lei 19684, abrangente para pessoas trans, que sem dúvida seria um passo fundamental para a visibilidade dessa população, suas condições de vida e o desenho de políticas públicas, sob o princípio de que “O que não é contado, não conta.” O progresso nesta última categoria é lento, mas percorre os registros administrativos.
[4]No único país da região, o Uruguai, onde foi realizado um levantamento exaustivo sobre pessoas trans, foi possível identificar quase 1.000 pessoas (aproximadamente 0,03% da população total). Este é o Censo Trans do Ministério do Desenvolvimento Social em 2016. Os autores argumentam que, apesar de seus esforços, nem toda a população foi recrutada, entre outras coisas, porque pessoas menores de 18 anos não foram consideradas. A estimativa das organizações sociais é que existam 3.000 pessoas trans no Uruguai, o que representaria um valor próximo de 0,1% da população total.
[5] As normas interamericanas nos levam a entender: o direito à saúde no sentido amplo (vinculado, por exemplo, aos direitos ao trabalho e à moradia); aos cuidados em saúde com base no consentimento informado e no acesso à informação; no acesso aos serviços de saúde com base nos princípios de acessibilidade e disponibilidade; e, assumindo as definições da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na responsabilidade estatal que deriva da violação deste direito.
[6] Por sua vez, a Carta Social das Américas de 2012, no capítulo 3, refere-se à resposta às doenças infecciosas emergentes e, no capítulo 5, à necessária solidariedade e cooperação entre os Estados. Ambos os capítulos são referências chave para a construção da resposta à pandemia do coronavírus.
[7] Elaborado para o Grupo de Trabalho sobre o Protocolo de San Salvador, de Juan Pablo Delgado e Andrés Scagliola.
MATERIAIS RECOMENDADOS:
01 Convención Interamericana Contra Toda Forma de Discriminación e Intolerancia. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/tratados_multilaterales_interamericanos_A69_discriminacion_intolerancia.pdf
02 Convención Interamericana Sobre Protección de los Derechos
Humanos de las Personas Mayores. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/tratados_multilaterales_interamericanos_A70_derechos_humanos_personas_mayores.pdf
03 Indicadores de Derechos Humanos. Guía para la medición y la aplicación. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publications/Human_rights_indicators_sp.pdf
04 Midiendo todas las brechas. Guía para la operacionalización de los Indicadores del Protocolo de San Salvador desde una Mirada Transversal LGBTI. Disponível em: http://www.oas.org/es/sadye/inclusionsocial/protocolossv/Guia_Operacionalizacion_Indicadores.pdf
05 Opinión consultiva 24/17 de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf
06 Principios de Yogyakarta. Disponível em: https://www.refworld.org/cgi-bin/texis/vtx/rwmain/opendocpdf.pdf?reldoc=y&docid=48244e9f2
07 Principios de Yogyakarta más 10 (em inglês). Disponível em: http://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2017/11/A5_yogyakartaWEB-2.pdf
08 Pronunciamiento de Expertos Independientes, Relatores Especiales y Grupos de Trabajo de Naciones Unidas sobre el COVID-19105. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25746&LangID=E
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