O que você precisa saber sobre a droga K

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As drogas K, como o K2, K4, K9, também conhecida como spice, black mamba, canabinoides sintéticos ou “maconha sintética”, tem ficado cada vez mais em pauta. Com a disseminação do uso, principalmente entre jovens e nas periferias, esse tema vem ganhando mais destaque na mídia, sempre associado a termos pejorativos como “droga zumbi” ou de “efeito zumbi”.

Esse discurso alarmista e de pânico moral, que demoniza a substância, não é eficaz para reduzir o uso e muito menos os danos decorrentes dele. Pelo contrário, contribui para a estigmatização das pessoas usuárias, afastando-as cada vez mais do cuidado em saúde e acesso a outros direitos. 

Isso já aconteceu em outros momentos da história, porém com outras drogas como a maconha e o crack. Ou seja, muda-se a droga, mas mantém-se o alvo da desumanização. No último ano, o Centro de Convivência É de Lei, por ser uma organização pautada pela Redução de Danos, vem discutindo com diversos serviços de saúde e pessoas usuárias estratégias de cuidado frente ao aumento do uso dessa substância, além de se articular em fóruns e eventos para entender como esse uso tem sido feito em diferentes regiões da cidade de São Paulo. 

Uso

 As formas mais comuns de uso são: fumada, quando vem adsorvida em ervas, e sublingual – ingerida de forma parecida com o LSD, quando o líquido é borrifado em papel. Ela também pode vir na forma líquida e usada em vaporizadores e cigarros eletrônicos ou vir em pó/comprimido. A grande variação na composição desses produtos torna os efeitos bem diversos e imprevisíveis, resultando em experiências diferentes para as pessoas usuárias. 

Imagem com texto descrevendo os efeitos das drogas K

“Maconha sintética”? Faz sentido esse termo?

K2 ou K9 são nomes populares para os canabinoides sintéticos, substâncias criadas em laboratório para imitar o THC (princípio ativo da Cannabis) e se ligar nos mesmos receptores do nosso organismo. Por isso também é cientificamente chamada de “Agonistas de Receptores Canabinoides Sintéticos”, em inglês, Synthetic Cannabinoid Receptor Agonists – SCRAs.

A palavra “canabinoide” refere-se a toda substância química, independentemente da estrutura ou origem, que se liga aos receptores canabinoides do corpo e do cérebro. Com base em sua fonte de produção, os canabinoides podem ser classificados em endocanabinoides, fitocanabinoides e canabinoides sintéticos.

Farmacologicamente, os fitocanabinoides e os endocanabinoides são agonistas parciais dos receptores CB1 e CB2, enquanto os canabinoides sintéticos podem agir como agonistas totais desses receptores. Por isso seus efeitos são bem mais potentes e imprevisíveis.

Assim, apesar do nome remeter à maconha, as drogas K possuem efeitos e riscos bem diferentes da planta Cannabis. Por isso, não é adequado usar o termo “maconha sintética” pois reforça uma ideia de associação entre as duas substâncias que são bastante distintas, principalmente em termos de riscos e, portanto, devem ter abordagens e cuidados específicos. 

De onde vem o K2?

O K2 foi sintetizado pela primeira vez em 1964, em um laboratório onde buscavam entender o sistema endocanabinoide e desvendar a atividade do THC que, na época, ainda não tinha estrutura conhecida.

Quando o potencial de tratamento do THC para náuseas, vômitos e dor do câncer foi aceito na década de 1970, várias empresas farmacêuticas decidiram desenvolver novas moléculas que, ao contrário do THC, poderiam ser patenteadas. No entanto, os testes clínicos não avançaram devido à baixa tolerância aos efeitos colaterais.

Mais de 450 compostos foram sintetizados ao longo do curso de 20 anos. O desenvolvimento contínuo por cientistas de variantes sintéticas do THC como ferramentas de pesquisa resultou em grandes avanços no entendimento do sistema endocanabinoide e seu potencial terapêutico.

Anos depois, os produtos com canabinoides sintéticos foram vendidos como “legal highs” na forma de misturas de ervas para fumar a partir de meados da década de 2000. No entanto, só em 2008 investigadores forenses detectaram, pela primeira vez, o canabinoide sintético JWH-018 num produto vendido sob a marca “Spice”.

Efeitos do proibicionismo

No Reino Unido, o uso em presídios iniciou quando o governo decidiu começar a fazer testes toxicológicos nas pessoas privadas de liberdade. Por não estarem na lista de substâncias rastreáveis, os canabinoides sintéticos passaram a ser uma opção para burlar esses testes e evitar punições. No entanto, quando começaram a ser proibidos, versões cada vez mais perigosas e desconhecidas dessas moléculas foram sendo introduzidas. 

O uso também se espalhou entre a população em situação de rua, por ser uma alternativa mais barata que o álcool, gerando diversos casos de atendimento hospitalar.

No Brasil, apesar de estarmos ouvindo mais recentemente sobre isso, o uso dos canabinoides sintéticos não é novo e parece estar seguindo tendências de outros países. A primeira identificação no país foi feita pela Polícia Federal em 2009 em amostra de ervas apreendida em São Paulo.

Em 2015, o estudo Global Drug Survey apontou que 1,8% da amostra de participantes do Brasil relatou ter usado canabinoide sintético no ano anterior. Vale ressaltar que essa amostra era composta majoritariamente de pessoas jovens e de classe média. A partir de 2016, surgiram os canabinoides sintéticos impregnados em papéis, uma nova forma apreendida principalmente em presídios.

Nos últimos anos o uso tem se difundido entre jovens em situação de vulnerabilidade social. A partir disso, o É de Lei, produziu este material para fornecer informações baseadas na ciência sobre essas substâncias, e disponibilizar estratégias que possam evitar os riscos e danos do uso. A Redução de Danos, lógica que norteia nossas ações, parte do princípio de que a informação é um instrumento importante para a autonomia das pessoas e para combater o estigma gerado por uma sociedade preconceituosa sob uma política proibicionista. A orientação para a abstinência, sozinha, não é capaz de evitar os possíveis riscos e danos do uso de substâncias. Dessa forma, a RD se torna uma alternativa mais eficaz e que garante a saúde e outros direitos. 

Imagem com texto descrevendo ações de redução de danos em situações de uso da droga K

Informe Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR)

No dia 6 de julho de 2023, o SAR realizou uma live para divulgação dos dados mais recentes sobre o tema, apresentados no 5° Informe do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR).

Em relação às apreensões, os canabinoides sintéticos ainda compõem uma ínfima proporção em termos de quantidade apreendida, quando comparados às drogas de origem natural, como cocaína (crack) e cannabis. No entanto, esse número vem aumentando.

De acordo com o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil do Estado de São Paulo, as apreensões das “drogas K”, somente nos primeiros quatro meses de 2023, atingiram um total de mais de 15kg, montante superior ao observado para o total do ano de 2021 e 2022.

Dados do Núcleo de Exames de Entorpecentes da Polícia Científica do Estado de São Paulo, os canabinoides sintéticos representam o grupo de NSP mais prevalente no estado, correspondendo a 42% das análises envolvendo substâncias sintéticas.

Apesar de não apresentarem a mesma magnitude de apreensões de canabinoides sintéticos registrada em São Paulo, estados como Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima e Tocantins já reportaram ao menos uma apreensão nos últimos três anos.

No entanto, o informe ressalta a dificuldade de mensurar e comparar as apreensões entre as diferentes Unidades Federativas, principalmente devido à variação na capacidade das análises laboratoriais de rotina para verificação de Novas Substâncias Psicoativas (NSP).

A baixa disponibilidade analítica para identificação dessas drogas também acontece para casos de amostras biológicas e dificulta a caracterização da intoxicação.

Desde 2021, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas vem detectando diferentes canabinoides sintéticos em amostras biológicas de pacientes, sendo a maioria menores de 26 anos de idade. A partir do início de 2023, o total de casos reportados até maio (10 casos) superou o registrado em todos os anos anteriores somados.

De acordo com dados da Prefeitura do Município de São Paulo, somente em 2023 (até 01/07/2023), foram 493 notificações de casos suspeitos de intoxicação por canabinoides sintéticos, um crescimento de cinco vezes com relação a todo o ano anterior, sendo a maioria (56%) concentrado na região Leste da cidade. Grande parte dos casos não foi confirmada por análise laboratorial e dependeu do critério clínico-epidemiológico para a constatação da suspeita de uso.

Os dados mostram uma grande predominância de pacientes do sexo masculino (81%) e no quesito raça/cor a maioria (72%) é composta de pretos e pardos. A maioria (74%) dos pacientes evoluíram sem sequela, mas 6% dos casos suspeitos apresentando sequela e/ou óbito (sete óbitos suspeitos de intoxicação ainda aguardam resultado laboratorial).

Referências:

New psychoactive substances: Pharmacology influencing UK practice, policy and the law https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32530350/

Nota técnica – Orientações para assistência às intoxicações por canabis/maconha sintética junto à população infantojuvenil na RAPS-MSP

Synthetic cannabinoid receptor agonists profile in infused papers seized in Brazilian prisons https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36454481/

The synthetic cannabinoids phenomenon: from structure to toxicological properties. A review https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32530350/

UNODC, World Drug Report 2022

5° Informe do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR) https://cdebrasil.org.br/wp-content/uploads/2023/07/5o-Informe-SAR-Canabinoides-Sinteticos.pdf 

Relatório Epidemiológico do Programa Municipal de Prevenção e Controle das Intoxicações de São Paulo-SP (PMPCI nº 062023) https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/vigilancia_em_saude/index.php?p=202659 

Live lançamento 5° Informe SAR:  Canabinoides sintéticos – Dados sobre a oferta, demanda e desafios no Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=YojA62-G1w4

  1. Ricardo Victor
    | Responder

    Matéria muito boa; sobre essa nova droga! Deveria ter um link para compartilhar!

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