Desde 2013, o É de Lei promove práticas de educação e assistência em direitos, com o objetivo de fortalecer a autonomia da população em situação de rua. Nos recentes anos, visitou centros de atendimento e promoveu atividades com esta população, como assembleias, rodas de conversa sobre Direitos Humanos e atendimentos jurídicos individuais. O texto abaixo é a reflexão de uma redutora de danos e advogada deste projeto.
Por Carolina Freitas
Ao longo do desenvolvimento dos trabalhos de Direitos Humanos do É de Lei, a equipe notou que, de todos os grandes aspectos sociais que se ligam à vida da população em situação de rua, dois merecem destaque.
O primeiro é de que muitos indivíduos nessa condição costumavam ser moradores das periferias de São Paulo antes de passarem a viver na região central. O segundo se refere ao histórico de passagens pelo sistema prisional, que é comum a grande parte deles.
Muitos dos usuários dos serviços por que passamos repetem quase as mesmas histórias: trabalhavam no tráfico de drogas nos seus bairros, foram presos uma ou diversas vezes e não voltaram ao lugar de origem de suas famílias por algum tipo de cobrança de dívida com a organização do tráfico.
Algumas pessoas ainda alegavam o rompimento com os parentes como a causa primordial de abandono da casa e da vizinhança (freqüentemente ligado à causa do uso problemático de drogas). Outros ainda apontaram a decisão de migrar para o centro pela necessidade de fugir e se esconder da polícia.
Perante esse cenário, a equipe concluiu que a região do centro da cidade ocupa um papel de “periferia das periferias”, porque concentra pobres ainda mais marginalizados do que as populações dos bairros periféricos.
A partir do momento em que as pessoas passam a viver em situação de rua, há uma ruptura drástica com importantes referências da vida em sociedade: os laços comunitários, com o trabalho, com a família, desaparecem.
As pessoas em situação de rua são banidas quase completamente do processo de produção de riqueza social. Como reflexo desse banimento, foi sendo construída a imagem estigmatizada da pessoa em situação de rua como sendo bandida, drogada, irrecuperável e por isso ignorável socialmente.
A falta de acesso a direitos como moradia, educação e trabalho, a qualidade de vida, o risco de segurança que correm esses indivíduos por ameaças policiais, são alguns dos elementos que fazem chegar à conclusão de que a situação da rua é parte chave de uma grave crise urbana (que leva, inclusive, milhares de pessoas que não podem pagar um aluguel e são atingidas pelo sistema financeiro de habitação a viverem nas ruas sem opção).
Muito embora parte da mesma ala de excluídos sociais, os sujeitos da rua não são homogêneos nem dividem exatamente as mesmas histórias. Há os andarilhos, os usuários de drogas, os deficientes físicos e mentais, os migrantes, as famílias recém migradas para a rua pelo desemprego etc.
O deslocamento das pessoas das periferias para o centro pode ser explicado pelo fato de que o centro é o local dorsal de produção e de circulação de riquezas na cidade.
Mas o Centro também é um lugar “mais público” do que outros distantes e, por isso, ameaças e violência, embora fortemente presentes nos bairros centrais, são tratadas de forma diferente. Como disse à equipe um dos usuários com quem convivemos e que tinha abandonado sua esposa e seus filhos há anos, “no centro ninguém anda com arma à mostra e isso é uma proteção, saber que não vou morrer de qualquer jeito em qualquer lugar”.
A mudança territorial da periferia para o centro é própria mudança do sentido da vida. O espaço da casa na periferia é oposto ao espaço da rua no centro: enquanto a primeira é o lugar do reconhecimento dos iguais, das relações afetivas, da identidade familiar e comunitária, o espaço da rua marca a perda da individualidade, da subjetividade e o peso da carga do anonimato.
Sistema prisional
Outro aspecto relevante da população com quem a equipe conviveu durante o trabalho é o número de egressos do sistema prisional que vivem na rua. Os presos são possivelmente o grupo social mais equiparável a essa população no que se refere ao estigma, preconceito e à falta de condições para se inserir na vida social, seja pelo afastamento dos laços familiares e comunitários, seja pelo ciclo de exclusão permanente do mercado formal de trabalho.
Muitos daqueles que conviveram conosco durante o período em que durou o Projeto tiveram suas primeiras passagens pelo sistema prisional quando ainda eram muito jovens e viram essa situação ser repetida por várias vezes.
As circunstâncias são variadas, mas destacam-se prisões por tráfico de drogas, roubo e furto. Não por coincidência, são estes os crimes no Brasil que atualmente fazem o maior contingente da população carcerária (cerca de 70%).
A vida na rua está intimamente ligada à condição de egresso. É notável que apenas a população negra e pobre preenche as cadeias brasileiras, muito embora não seja o único segmento social a cometer crimes previstos na legislação. Ocorre que é a mais perseguida pelos aparatos repressores do Estado e por isso está presa sistemicamente.
A falta de oportunidades no mercado de trabalho para alguém marcado pela passagem no sistema prisional determina também a ida pela primeira vez ou a volta para o espaço da rua, onde anonimato e informalidade dão chances aparentes de sobrevivência, mas onde também quebram-se importantes vínculos sociais e onde acabam muitas vezes de novo criminalizados.