Quem cuida de quem cuida? – A regulamentação da Redução de Danos no Brasil
A Redução de Danos (RD) é uma abordagem ao fenômeno das drogas que visa minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas e à política de drogas no geral, atuando com cuidado em diversos âmbitos da vida, como saúde, assistência social e garantia de direitos.
A RD tem início na década de 1980 e, desde então, sua prática é bastante marcada pela resistência das pessoas que dedicaram e dedicam suas vidas a ela. Se no começo esse era um trabalho criminalizado, com muita luta foi possível construir experiências de Redução de Danos que trouxeram resultados exitosos, principalmente no campo da saúde e das IST/aids. Junta-se a isso, em especial, a criação da Constituição de 1988, a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica, implementada em 2001 no Brasil.
Dessa forma, a RD foi ganhando espaço e sendo parte de programas e projetos governamentais, assim como em universidades e organizações da sociedade civil, como o Centro de Convivência É de Lei, que existe desde 1998.
Mesmo com tantos avanços na lógica do cuidado integral e multidisciplinar, e do entendimento da importância dele ser construído junto às pessoas afetadas pela política de drogas, temos passado por anos de instabilidade e incertezas. Exemplo disso é a Política Nacional sobre Drogas, que em 2019 retirou do texto qualquer menção à Redução de Danos. Além disso, diversos movimentos têm sofrido perseguições políticas justamente por atuarem nesse campo.
O trabalho com RD, hoje, é oficialmente garantido na Portaria de Consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017, que determina a adoção da lógica da RD dentro dos serviços oferecidos pelo SUS, além de regulamentar estratégias de RD, como o fornecimento de insumos de prevenção.
Regulamentação da e do Agente de Redução de Danos
Apesar da Redução de Danos enquanto estratégia de cuidado ser reconhecida pela Portaria, até hoje a atuação enquanto “Agente de Redução de Danos” ainda não é regulamentada como uma categoria de trabalho.
Nós, do É de Lei, enquanto trabalhadoras e trabalhadores da Redução de Danos que defendem a garantia de direitos e lutam por eles, acreditamos que a regulamentação do nosso trabalho é uma forma de garantir a seguridade para quem atua nesse campo e, tão importante quanto, é garantir o cuidado para quem constrói a RD conosco, quem frequenta nosso Centro de Convivência e quem atendemos nos territórios.
Esse é um trabalho não apenas importante para o público com quem trabalhamos, que são pessoas em diversas situações e níveis de vulnerabilização. Esse também é um trabalho com base em estratégias exitosas e que respeita a autonomia de cada pessoa. Assim, enxergar as pessoas que trabalham com RD como trabalhadoras é também promover a RD, garantir que mais pessoas a conheçam e tenham acesso a ela. Regulamentar o trabalho de Agente de Redução de Danos é uma estratégia de cuidado.
Ao regulamentar a profissão, as redutoras e os redutores de danos poderão garantir o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar e multiprofissional que terá articulação com programas de promoção geral à saúde, além de fortalecer as redes em que as pessoas que usam drogas estão inseridas.
Esse papel social da e do Agente Redutor de Danos é fundamental para alinhavar as iniciativas de saúde, assistência social e direitos humanos dos municípios, tendo em vista que suas diretrizes de atuação estão associadas à articulação e integração, o que favorece a melhora da qualidade de vida das pessoas atendidas.
Sem essa regulamentação, a articulação muitas vezes depende dos trabalhadores e das trabalhadoras envolvidas naquele momento. Quando há uma demissão ou algum outro problema, as atividades podem se perder na rede de atenção psicossocial e até mesmo as pessoas usuárias dos serviços perdem vínculos.
Em que ponto estamos?
A política de drogas brasileira, hoje, não responde aos problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas da população, pois direciona suas atividades para apenas a abstinência, sem levar em conta que a maioria das pessoas usuárias de drogas não desenvolvem problemas. Nesse sentido, é fundamental que tenhamos políticas públicas de redução de danos que possam atingir tanto as pessoas que desenvolvem problemas relacionados ao uso de drogas, quanto as que não apresentam problemas.
Dessa maneira, as estratégias empregadas serão baseadas na realidade das pessoas e não apenas em uma posição ideológica moralista, mas identificando as pessoas como cidadãs de direitos e sujeitos políticos.
Um dos programas municipais mais exitosos que atuou com pessoas usuárias de substâncias psicoativas na cidade de São Paulo foi o Programa De Braços Abertos, ele era um programa de garantia de direitos e que se baseava na Redução de Danos. As pessoas que trabalhavam no programa foram capacitadas para atuar com RD, além de construírem as atividades do programa de maneira coletiva, baseada nas demandas das pessoas atendidas e sem colocar questões morais como metas a serem atingidas.
Tendo a redução de danos como diretriz, foi possível identificar a melhora da qualidade de vida das pessoas atingidas sem que fossem pressionadas a ficarem abstinentes. Ainda assim, diversas pessoas tinham essa meta pessoal e conseguiram atingi-la. O programa, infelizmente, foi sendo desmontado desde a posse de João Dória, em 2017, quando foi eleito prefeito da cidade de São Paulo.
Em 24 de novembro, Dia da Redução de Danos, a vereadora Erika Hilton protocolou o Projeto de Lei 815/2021, que “Autoriza o Poder Executivo Municipal a criar a categoria funcional de “agente redutor de danos” e a contratar pessoal para atender ao interesse público no Município de São Paulo”.
Além dele, existem outras iniciativas no Brasil pelo reconhecimento da Redução de Danos enquanto uma política pública e da e do Agente de Redução de Danos como profissional. Compilamos algumas delas:
Estadual
Política Pública Estadual sobre Drogas de Mato Grosso do Sul (Decreto nº 15.027 de 18/06/2018)
Programa de Redução de Danos no Distrito Federal (Lei nº 6.643, de 21 de julho de 2020)
Municipal
Política de Redução de Danos de Salvador (Projeto de Indicação 335/2019)