Novos opióides sintéticos são encontrados como adulterante em drogas K

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O Brasil se destaca como um dos países com menor prevalência de uso de opióides, em especial se comparado a países da América do Norte e Europa. No entanto, novos fenômenos sinalizam possíveis mudanças nesse cenário. O aumento das vendas de opioides prescritos e das apreensões de opioides sintéticos pela polícia levantam uma antiga preocupação sobre o uso dessas substâncias no país. Ainda não há uma tendência clara, mas, dado os riscos e a pouca familiaridade dos serviços de saúde para lidar com o tema, vale ficarmos atentes e monitorar de perto as evidências.

Os opióides representam uma classe de substância com alto risco de morte por overdose, principalmente os opióides sintéticos, pois são bem mais potentes que os de origem natural (como a morfina). Nos Estados Unidos, por exemplo, país que enfrenta uma grave crise de saúde pública relacionada ao uso de opióides, mais de 75% das mortes por overdose de drogas em 2022 envolveram um opióide, sendo 70% relacionada a opióides sintéticos como o fentanil.

Nos últimos anos, o Brasil tem registrado um aumento na presença de opióides sintéticos, especialmente do grupo dos nitazenos. Esses compostos, que foram sintetizados na década de 1950, são agonistas potentes do receptor μ-opioide (MOR), com uma potência que pode ser de 10 a 20 vezes maior que a do fentanil. A detecção de nitazenos no Brasil, onde os opióides não são populares, sugere uma possível mudança nas dinâmicas do mercado de drogas no país.

Um estudo recente, publicado em junho de 2024, revelou a crescente presença dos nitazenos em apreensões feitas no estado de São Paulo entre julho de 2022 e abril de 2023. Já haviam registros da circulação de nitazenos antes desse período. No entanto, após julho de 2022, houve um aumento expressivo nos números de apreensões, em especial do metonitazeno, superando outros opióides mais conhecidos. Dos 140 casos investigados no estudo de apreensões contendo opióides, 95% pertenciam ao grupo dos nitazenos (incluindo metonitazeno, isonitazeno e etonitazeno), enquanto apenas 5% consistiam de outros opióides como a morfina e o fentanil. 

Um dado que chama atenção é que os opióides foram encontrados principalmente em amostras de ervas (99% dos casos), muitas vezes misturados com canabinoides sintéticos, (também conhecidos como drogas K), aumentando o risco de overdose e complicações à saúde. Segundo o estudo, é a primeira vez em que os nitazenos são detectados na forma de fragmentos de ervas, o que sugere ser um fenômeno específico do Brasil. Esse tipo de apresentação costuma ser utilizado na forma fumada. No entanto, o efeito de fumar um opióide potente junto com canabinoides sintéticos é desconhecido e pode se tornar ainda mais imprevisível considerando que os usuários não sabem que estão utilizando uma substância adulterada com opióide

Ainda sobre o estudo, apenas 1% das amostras estavam em forma de pó ou comprimido. Das três amostras de comprimido duas continham apenas morfina e uma continha uma mistura de metanfetamina, MDMA e butonitazeno. A amostra de pó continha apenas fentanil.

O cenário cada vez mais dinâmico e globalizado do mercado de drogas, onde novas substâncias entram e saem rapidamente, é mais um sintoma do quanto o proibicionismo torna o  contexto de uso de drogas mais perigoso. Novas substâncias psicoativas são produzidas principalmente para burlar as leis antidrogas internacionais. Como não estão incluídas nas listas de controle, podem circular mais livremente. Assim, a cada substância que entra nas listas de controle, novas são criadas, perpetuando um ciclo que parece não ter fim.

Esse fenômeno destaca a necessidade de uma reformulação profunda das políticas de drogas, superando o paradigma proibicionista. Além disso, impõe urgência para que o poder público cumpra com o seu papel de monitoramento, disponibilização de dados atualizados e elaboração de planos de contingência para lidar com emergências e crises que possam ameaçar a saúde pública. 

Neste sentido, é fundamental a expansão e o fortalecimento do Subsistema de Alerta Rápido (SAR) – vinculado à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD) do Ministério da Justiça – para efetivar seu objetivo de subsidiar de forma rápida e qualificada o Sistema Único de Saúde a respeito de novas substâncias psicoativas e adulterantes perigosos. Apesar de ter sido criado em 2021, o SAR segue desconhecido por boa parte dos profissionais de saúde.

É essencial que informações sobre mudanças no mercado de drogas sejam amplamente acessíveis ao principal público afetado: as pessoas que usam drogas. Esse acesso é vital para garantir saúde e segurança, permitindo a elaboração de práticas e estratégias de redução de danos.

Por exemplo, uma ferramenta de redução de danos extremamente útil para lidar com os riscos das substâncias adulteradas é a testagem de substâncias (drug checking). Essa intervenção de saúde pública vem sendo implementada em diversos países e permite que serviços de saúde e usuários analisem a composição química das substâncias e recebam informações e aconselhamento adequado. Essa abordagem tem se mostrado eficaz na prevenção de intoxicações e no monitoramento do mercado ilícito, incluindo o surgimento de novas substâncias psicoativas.

Além disso, trabalhadores da rede de saúde e assistência social devem estar informados sobre as substâncias que circulam em seus territórios. A educação continuada desses profissionais, juntamente com melhorias na estrutura de atendimento (como a possibilidade de realização de exames toxicológicos em laboratórios capacitados) e acesso a insumos de prevenção e antídotos como a naloxona (para casos de intoxicação por opióides), são centrais para enfrentar os desafios que esses novos compostos apresentam, garantindo uma abordagem informada e eficaz no cuidado à saúde da população, que pode, literalmente, salvar vidas.

Diante desse cenário, o que fazer? 

  • Converse de maneira franca com suas redes sobre uso de drogas.
  • Cobre sua rede local de saúde sobre medidas concretas de prevenção à overdose.
  • Articule-se em coletivos, fóruns e outros espaços políticos que discutam as políticas de drogas baseadas em evidências e sem julgamentos morais. 
  • Atualize-se sobre novas substâncias psicoativas e dicas de redução de danos seguindo as redes sociais do É de Lei.

Referências:

Araújo KR et al. Synthetic illicit opioids in Brazil: Nitazenes arrival. Forensic Science International: Reports, 2024. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2665910724000240 

Bastos FI, Krawczyk N. Reports of rising use of fentanyl in contemporary Brazil is of concern, but a US-like crisis may still be averted. Lancet Reg Health Am, 2023. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2667193X23000819?via%3Dihub 

Brunt et al. Drug testing in Europe: monitoring results of the Trans European Drug Information (TEDI) project. Drug Test Anal. 2017. Disponível em: https://analyticalsciencejournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/dta.1954