COMUNICADO – Não seremos coniventes com o Estado: a Redução de Danos só é possível quando for seguro trabalhar para o cuidado
No começo de 2020, o Centro de Convivência É de Lei, que trabalha com redução de riscos e danos relacionados ao uso de drogas em contextos de vulnerabilidade há mais de 20 anos, precisou rever sua atuação perante a chegada da pandemia. Com o início da quarentena decretada pelo governo do estado e o esvaziamento do campo por parte de parte das ações de pessoas voluntárias, dos serviços públicos de saúde e assistência social, entendemos que era importante estarmos presentes no território.
A primeira demanda era por informação. As pessoas não sabiam muito bem o que era o novo coronavírus e como se prevenir dele. Depois, mesmo entendendo sua gravidade, não é possível, na rua, seguir as recomendações mais básicas, como lavar as mãos, usar máscara, isolar-se em casa.
Por isso, nós do É de Lei equipamos a equipe com todos os EPIs necessários, realizamos formações internas com especialistas para podermos atuar da melhor maneira possível, produzimos materiais informativos com orientações que fazem sentido à situação de rua, colamos lambes pela cidade e projetamos as informações em prédios, pela cidade de São Paulo. Também juntamos aos kits de redução de danos, kits de higiene com álcool em gel, sabonete, lenços de papel e máscaras descartáveis.
Paralelamente, por meio do trabalho de comunicação e advocacy, pressionamos o poder público para instalação de pias pela cidade para que as pessoas pudessem lavar as mãos, denunciamos o fechamento do único equipamento que havia na região da Cracolândia, realizamos diversas campanhas de arrecadação, nos unimos a diversas outras organizações e coletivos que atuam também na linha de frente no acolhimento de pessoas em situação de risco, na distribuição de cestas básicas, marmitas, cobertores e roupas, sempre com foco no que guia nosso trabalho: a redução de danos.
Uma das estratégias de RD que se associa ao trabalho de campo do É de Lei é a redução de riscos à saúde, principalmente por meio da prevenção. Os insumos e a criação de vínculos são essenciais para que isso seja possível. No entanto, tem ficado cada vez mais difícil realizar um trabalho efetivo de redução de riscos e danos quando o poder público atua cada vez mais na contramão do cuidado e da bioética.
As demandas essenciais, como o frio, a fome e a moradia são urgentes e nos impedem de ir além do assistencialismo. O Atende II, localizado na região da Cracolândia, permanece fechado, mesmo com decisão judicial para que seja reaberto. As reintegrações de posse estão acontecendo mesmo proibidas, a polícia segue truculenta na cidade de São Paulo. As ações violentas da polícia, como a que aconteceu ontem (2/7) na Favela do Moinho e na Cracolândia seguem frequentes e ilegais.
A flexibilização do isolamento social foi uma decisão que nos pareceu bastante perigosa, se não catastrófica, e o que observamos nas ruas é cada vez mais aglomerações e mais pessoas andando sem máscaras, enquanto as mortes por COVID-19 só aumentam e as soluções sugeridas pelo governo seguem ignorando as pessoas em vulnerabilidade, como por exemplo o anúncio de que pessoas sem máscara em São Paulo serão multadas em R$500. Além disso, com o entendimento de que o isolamento pode ser flexibilizado, algumas parcerias importantes para nosso trabalho também foram encerradas, como por exemplo, a Volvo, que há três meses disponibilizou dois carros ao É de Lei e nos possibilitou potencializar nosso alcance tanto em quantidade de trabalho quanto na presença em outros territórios, e agora nos pediu a frota de volta.
As políticas estatais são genocidas e têm alvo: a população negra, pobre e LGBTQIAP+. Nós não seremos coniventes com o Estado. O cuidado com as pessoas que estão na rua e com a própria equipe tem se tornado impossível. Por isso, decidimos nos retirar das ações nas ruas por 4 semanas.
Encaminhamos todas as doações e kits de higiene do É de Lei que seriam entregues no próximo mês para organizações em que confiamos e que estão atuando nos territórios, assim as pessoas não serão impedidas de ter acesso aos nossos insumos. Nesse recesso, seguiremos acompanhando os desdobramentos da pandemia e vamos, novamente, repensar as estratégias possíveis e efetivas de cuidado que não coloquem a nossa equipe e as pessoas que atendemos em risco.
Aos parceiros, continuem contando conosco. Continuaremos atuando da mesma forma para apoiá-los e garantir que as doações cheguem às pessoas que dependem delas neste momento. Seguimos também abertas a pensar essas formas de cuidado conjuntamente. Para que possamos atuar com a redução de danos é necessário primeiro estarmos em segurança!