O projeto “Os Direitos Humanos vão às Ruas” fundamenta-se na ideia de que direitos (humanos) também são (ou podem ser) uma ferramenta de (ou para) a redução de danos. Seja a promoção daqueles direitos anunciados nas leis e na Constituição (“Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados….) Seja, no mínimo, a consciência de que, APESAR DO QUE ESTÁ ESCRITO, sim, a sociedade é opressora e, sim, eis algo a se enfrentar. Talvez com as próprias armas do direito, talvez não.
O projeto foi financiado pelo Ministério da Saúde em parceira com UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), e fundamentou-se na realização de ouvidorias comunitárias junto a populações de rua e em trabalhos de educação em direitos. Fruto destas experiências figura este relatório que traça um cenário da vida da população em situação de rua do centro de São Paulo, listando 41 denúncias de violações.
A primeira atividade do projeto foi o curso Drogas, HIV e Direitos Humanos. As turmas foram compostas especialmente por usuários de drogas da região da Cracolândia, mas também por profissionais da área. A segunda atividade correspondeu à coleta de denúncias de abusos de direitos humanos, ora através da realização de ouvidorias comunitárias, ora através do trabalho de campo do É de Lei.
As ouvidorias ocorreram em quatro espaços. No Centro de Convivência É de lei (11 participantes), na Matilha Cultural (7 participantes), no Serviço Franciscano de Apoio à Reciclagem – RECIFRAN (26 participantes), e na na Casa de Oração do Povo da Rua (10 participantes).
Nos encontros, os profissionais do É de Lei expuseram mínimas noções de direitos, ouviram denúncias e orientaram os presentes sobre como concretizar seus direitos através dos serviços públicos. MAs as barreiras culturais e econômicas são enormes. Em geral, essa população é mal atendida, quando não tem o atendimento negado.
Como expressado, 41 denúncias foram catalogadas – certamente um número aleatório, que não quer dizer nada. Poderiam ser 15 mil. Trata-se, ainda assim, de uma pequena etnografia da população de rua em relação a seus direitos. Abaixo, alguns relatos, em primeira pessoa, do coordenador do projeto Raul Nin Ferreira:
- “Um caso exemplificativo foi relatado por um usuário do É de lei, W.J. P., que é egresso do sistema prisional, e relatou ter dificuldades para tirar seus documentos para buscar um trabalho formal em função de não ter pagado a multa aplicada conjuntamente à pena de prisão. Não bastasse todo preconceito aos egressos do sistema prisional, o jovem sofreu com o tratamento discriminatório que recebeu dos funcionários do cartório judiciário em Guarulhos, onde foi tentar resolver os problemas burocráticos. Muito revoltado com o tratamento recebido e desanimado com a possibilidade de conseguir uma reinserção social, pensava em voltar “pra vida do crime”. Após ser orientado a buscar a Defensoria Pública estadual no atendimento especializado para a população em situação de rua, o jovem foi muito bem atendido (a ponto de ficar impressionado com o respeito e atenção dos defensores públicos) e pode dar encaminhamento à retirada dos documentos.”
- “Uma situação que nos chamou atenção foi o caso de L. R, um usuário de crack que sofria de intensa dor de barriga procurou o Pronto-Socorro da Santa Casa de Misericórida de São Paulo. Depois de três horas esperando ser atendido, conta que recebeu um “sermão do médico”, dizendo que ele estava daquele jeito por causa da pedra, e deu apenas um soro sem nenhuma medicação, saindo ainda com diarréia, fraqueza e mal estar depois de um hora e meia. Foi orientado a realizar reclamação na gestão local do SUS e se o problema persistisse, que procurasse o atendimento na Defensoria Pública”.
- “A. S., outra usuária do RECIFRAN, relatou discriminações pelo fato de ser transsexual no emprego temporário pelo qual passou. Segundo ela, suas coisas que estavam guardadas no armário de funcionários no interior da empresa foram furtadas e não teve qualquer tipo de assistência e amparo para reavê-las, nem mesmo para que os responsáveis fossem responsabilizados. Foi orientada de que a empresa tem sim responsabilidade no âmbito da relação trabalhista e que poderia ajuizar uma demanda em face do empregador, devendo procurar a Defensoria Pública da União”.
- “Na ouvidoria realizada no RECIFRAN, ouvimos o relato de B. B. afirmando que foi abordado por PMs quando possuía uma pequena quantidade de maconha, e foi obrigado a comer as trouxinhas com a droga com plástico e tudo. Na ouvidoria realizada na Casa da Oração, G. (guardador de carros) relatou que foi abordado por PMs num dia desses bem quentes de janeiro de 2014, sendo obrigado pelos PMs a permanecer sentado em cima de sua mão, uma forma curiosa de tortura praticada pelos policiais. Na ouvidoria realizada no Matilha Cultural, o jovem A. relatou que sofreu uma abordagem por PM quando estava com sua namorada na região da Luz. Segundo relata, os PMs do sexo masculino revistaram sua namorada com “desrespeito” e por isso se revoltou; houve briga e ele acabou sendo espancado pelos PMs”.
- “L. M. P. M, relata que “estava dormindo, [quando] saiu uma briga e os caras [PMs da base comunitária da Praça Júlio Prestes] mandaram eu levantar, demorei um pouco e ele me deu com o cassetete na cabeça… Nem me socorreu, tomei 5 pontos na cabeça.”. “Tive que ir até o corpo de bombeiros” para ser atendido, pois os policiais lhe negaram apoio para chegar até o hospital. E arrematou: “O policial me jurou de morte”
- “Outra caso que nos chegou pela equipe de redutores de danos foi o de W. C. A., o qual transcrevemos na íntegra: “Eu estava dentro do espaço da unidade Braços Abertos na rua Helvétia, quando observo que há uma agitação na rua, pessoas vem correndo para dentro da unidade, fugindo de confronto com a polícia. Usuários contaram que uma jovem havia sido detida na Alameda Dino Bueno, em meio ao ‘fluxo’, fato que provocou a reação de alguns dos moradores de rua da região e a PM reagiu atirando bombas de gás lacrimogêneo (eu obsevei na frente da unidade, cerca de 4 bombas lançadas). Logo após o ocorrido, por volta das 15h, observo que o ‘Pai Tal’ estava chorando, queixando-se da abordagem violenta e de dores pelo corpo, enquanto tomava banho de mangueira, segundo ele, para aliviar as dores. Ele disse que 03 policiais militares o abordaram, após lançarem duas bombas de gás lacrimogêneo, na esquina da Dino Bueno com a rua Helvétia, mandaram que encostasse para revista, mas começaram a bater com socos e o cacetete. O mesmo relata que tentou sair andando, mas que eles iam batendo, enquanto pedia que parassem, ‘vocês estão batendo demais em mim’ (sic).”.
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