Pobreza menstrual e população vulnerabilizada: por que absorventes e calcinhas se tornaram insumos de redução de danos?

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Pobreza menstrual e população vulnerabilizada: por que absorventes e calcinhas se tornaram insumos de redução de danos?

por Ana Luiza Voltolini Uwai

O Centro de Convivência É de Lei trabalha há mais de 20 anos com redução de riscos e danos associados ao uso de drogas, especialmente em contextos de uso por pessoas vulnerabilizadas devido à atual política de drogas adotada no Brasil. 

Ao longo dos anos, foi possível notar que a grande maioria das pessoas que acessava o Centro de Convivência eram homens cisgêneros. No entanto, a ausência de mulheres, cis, trans e travestis, assim como de pessoas não binárias e homens trans, nunca significou que estas pessoas não usassem drogas ou, ainda menos, que não eram vulnerabilizadas pelo sistema vigente. 

Pelo contrário, observamos que o não acesso dessas pessoas a espaços de cuidado, principalmente os institucionais, como serviços de saúde e assistência social, se dão justamente por conta do estigma e das vulnerabilizações às quais são submetidas diariamente e que muitas vezes são reiteradas nesses lugares de diversas formas, como o não respeito ao nome social até com violências físicas e negativa de atendimento. Dessa forma, o próprio conhecimento de lugares como o É de Lei, que têm como proposta uma atuação livre de preconceitos, é afetado.

Ainda, as constantes tentativas de marginalização dessa população, da população LGBTQIAP+ e da população usuária de drogas como um todo e que estão imbricadas à lógica da “guerra às drogas”, que se materializa em uma guerra a determinadas pessoas, conferem a elas espaços de violações de direitos, seja em espaços racializados, alvo de abordagens policiais truculentas, seja nas prisões ou nas comunidades terapêuticas. 

Segundo o Censo da População em Situação de Rua de 2019, quase 15% das pessoas nessa situação na cidade de São Paulo são mulheres e quase metade de toda a população se declara negra. 95,8% se declararam cisgêneros, mas o relatório não distingue entre mulheres cis e homens cis, e 0,5% declararam ser homens trans. O Censo também fala sobre a questão da pobreza menstrual ao perguntar sobre uso de absorventes ou coletores a “pessoas do sexo feminino”: “5,5% respondeu que utilizava absorventes, mas que as vezes utilizava também pedaços de panos ou papéis, 4,8% respondeu que não utilizava nada e 2,4% respondeu que não utilizava absorventes, mas pedaços de panos ou papeis”. Ainda, uma informação importante de se destacar é que mais de 30% das pessoas já passaram pelo sistema prisional.

Essa é uma questão bastante presente na atuação de campo do É de Lei, pois, diante deste cenário, desde 2018, temos um núcleo dedicado a olhar com mais atenção as especificidades dessa população.

Como a redução de danos pode atuar com o tema da pobreza menstrual?

Uma importante característica da redução de danos é a criação de vínculo, que abre caminho para a construção de cuidado que faça sentido para a pessoa, que se torna protagonista do seu processo. Insumos são materiais de prevenção utilizados por agentes de redução de danos (ARD) na atuação em campo, os quais funcionam, para além de sua função direta, como instrumento para a criação de vínculos e para o reconhecimento da equipe no território. 

São exemplos de insumos que o É de Lei historicamente mobiliza em suas ações: Piteiras de silicone, protetores labiais, preservativos internos, externos, gel lubrificante, panfletos com informações sobre cada uma das substâncias mais comumente presentes na vida das pessoas com quem trabalhamos, papel para cigarros, água etc. 

Como princípio da RD, os insumos surgem de demandas trazidas por pessoas usuárias de drogas, a partir de seus usos e contextos de uso, e podem ser, inclusive, construídos por essas pessoas e/ou junto a elas.

A partir da estratégia de atuação entre pares e da presença de mais mulheres cis, travestis, pessoas não binárias e homens trans na equipe do É de Lei nos últimos anos, foi possível ouvi-las e criar insumos, assim como estratégias para garantir o cuidado para essa população e a luta pela ampliação das possibilidades de autonomia. 

Em decorrência disso, desenvolvemos em conjunto insumos que ajudam na vinculação com esse público e suprem demandas urgentes trazidas à equipe. São eles:

-Kit calcinha, com calcinhas para mulheres cis e calcinhas de aquendar para mulheres trans e travestis

-Kit absorvente, como absorventes internos e externos para pessoas que menstruam

É importante frisar que os insumos, apesar de suprirem tais demandas imediatas e garantirem a higiene e, consequentemente, um acesso mínimo à saúde, não devem ser vistos como itens que resumem essas corpas à sua roupa íntima ou à menstruação, seja na rua ou nos estabelecimentos de controle social. São pessoas que há muito tempo resistem, formam redes de apoio entre si e criam suas próprias estratégias para garantir sua sobrevivência de maneira digna. 

Para nós do É de Lei, lutar para que a pobreza menstrual não seja um problema que vai vulnerabilizar ainda mais pessoas que menstruam, seja nas prisões ou na rua, vai além de garantir absorventes. Ao atuarmos com redução de danos, trabalhamos no sentido de defender o direito à autonomia, à escolha, à organização política e direitos básicos, como moradia, alimentação, educação e trabalho em liberdade. Se todos esses direitos forem garantidos, o acesso a itens básicos de higiene também deixam de ser um problema.

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