A Carta Aberta assinada por dezenas de organizações da sociedade civil foi divulgada na última segunda-feira (27/10), exigindo do atual governo a revisão urgente da política de drogas no Brasil.
CARTA ABERTA AO PRESIDENTE LULA
O uso de substâncias psicoativas, comumente conhecidas como drogas, é uma prática que acompanha todas as sociedades humanas há milhares de anos, com registros históricos, antropológicos e arqueológicos que comprovam sua utilização em diversas culturas e contextos. Ainda no início dos anos 1900, substâncias como maconha, cocaína, ópio e derivados eram vendidos em drogarias e utilizados em variados procedimentos médicos. A política de proibição de determinadas substâncias no último século vem produzindo um conjunto de efeitos sociais, econômicos e políticos já reconhecidos como altamente prejudiciais e irreversíveis. Assertivamente chamada de “guerra às drogas”, tal política não conseguiu reduzir o consumo nem a venda de substâncias ilícitas, mas sim intensificou desigualdades sociorraciais e violências estruturais. Vale destacar que a proibição de determinadas drogas não se fundamenta em critérios científicos de saúde pública, mas essencialmente em valores morais, interesses econômicos e objetivos políticos que criminalizam certos grupos sociais, especialmente os pobres e racializados.
No Brasil, nação fundada e estruturada na escravização de pessoas negras, grande parte das prisões está relacionada a crimes ligados ao tráfico, atingindo de forma desproporcional jovens negros e periféricos e mulheres negras. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024), mais de 28% dos encarcerados respondem por delitos relacionados à Lei de Drogas (Lei no 11.343/2006), enquanto mais de 60% de mulheres estão presas por esse crime, o que demonstra o caráter seletivo e punitivo dessa legislação. Além disso, a criminalização do uso e do comércio ilegal gera um mercado paralelo altamente lucrativo, controlado por organizações criminosas que se fortalecem na ausência de regulação estatal e que impactam a segurança pública.
É a partir de tais dados sobre a qual parte da sociedade civil organizada se debruçou nas últimas décadas para argumentar que a política proibicionista vem fracassando em sua suposta função precípua de erradicar a venda, o uso e as próprias substâncias ilícitas em si. Por outro lado, é indiscutível como tal necropolítica vem obtendo sucesso no processo de reinvenção e reatualização do controle social sobre determinadas pessoas, comunidades e territórios, ao passo que os verdadeiros grupos que lucram com o mercado ilícito de drogas não sujam suas mãos de sangue. Vale ressaltar que não é possível equiparar usuários e traficantes. Defender uma análise crítica sobre as políticas de drogas — especialmente ao evidenciar os impactos negativos da criminalização — não significa fomentar ou incentivar o tráfico. Pelo contrário, trata-se de questionar a ineficácia e as injustiças da política proibicionista vigente que, ao longo de décadas, fortaleceu o poder econômico e territorial das organizações criminosas, ao mesmo tempo em que fragilizou políticas públicas de saúde, educação e assistência social.
A proibição das drogas e o estigma social associado ao uso ainda produzem um efeito de afastamento dos usuários dos serviços de saúde, agravando as vulnerabilidades e impedindo o acesso ao tratamento adequado. O proibicionismo e a política repressiva também impedem o acesso a terapias que vem se mostrando comprovadamente eficazes, como a cannabis e os psicodélicos, e impacta as associações canábicas, hoje ainda sem a regulamentação adequada que permita a segurança jurídica num serviço de saúde que atende milhares de famílias em todo o Brasil. Além disso, quando o uso é associado ao crime, usuários evitam procurar ajuda com medo de serem denunciados, presos ou discriminados, gerando uma barreira de acesso ao cuidado por quem precisa. Políticas preconceituosas, moralistas e repressivas isolam os usuários, já marginalizados e vítimas de sucessivas violações de direitos. Criminalizar o uso de drogas é uma política falha que transforma o cuidado em punição, ignorando a ciência e a saúde pública. Usuários não financiam o tráfico, são vítimas de um sistema desigual que lucra com a proibição. Urge uma política baseada em direitos humanos, redução de danos e cuidado em liberdade, conforme a Constituição e compromissos internacionais.
Acreditando no seu compromisso, Presidente Lula, com o bem estar social de todas as pessoas do Brasil, na defesa irrestrita dos direitos humanos e do Sistema Único de Saúde/SUS, nas políticas de enfrentamento à violência e às desigualdades sociais, a sociedade civil antiproibicionista organizada se coloca à disposição para construir junto à Presidência da República outros caminhos de cuidado, justiça social e reparação histórica para as consequências de uma guerra que não irá acabar enquanto suas estratégias não forem trocadas.
Assinam esta carta:
Organizações da Sociedade Civil Integrantes do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD)
● Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA)
● Rede Latino-americana e do Caribe de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD)
● Escola Livre de Redução de Danos (ELRD)
● Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD)
● Iniciativa Negra Por uma Nova Política de Drogas (INPPD)
● Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC)
● Centro de Convivência É de Lei
● Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)
● Rede Reforma – Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas
● Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (FACT)
● Associação para pesquisa e desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (CANNAB)
Demais Organizações da Sociedade Civil
Espaço Normal (Redes da Maré); Laboratório de Direitos Humanos da (FND/UFRJ); Movimentos; Movimento Nacional da População em Situação de Rua/Bahia (MNPR-BA); Fórum Estadual de Redução de Danos do Rio Grande do Sul (FERD-RS); Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA); Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD); Movimento Nacional População de Rua (MNPR no RN); Associação Águia Morena Redução de Danos; Por Nós; Plataforma Fervo2k20.org; Laboratório da Diversidade Criativa do Brasil – LaBI.HUB; Laboratório de Estudos e Tecnologias em Artivismos, Diversidade e Inovação – LaBI.pos; Movimento RUA Juventude Anticapitalista; CULTIVE – Associação de Cannabis e Saúde; Instituto Rede Viva (Florianópolis/SC); Desencarcera Sergipe (Aracaju/Sergipe); Mulheres Arteiras Sergipe (Aracaju/Sergipe); Div3rso UNIFESP.
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