Seção traz relatos dos redutores de danos sobre o dia a dia na Cracolândia
Trabalho de campo: Roberta Costa e Thiago Calil
Relato de campo: Roberta Costa
Edição: Gabriela Moncau
As mulheres dançavam, fumavam, pulavam e riam. A Guarda Civil Metropolitana (GCM) começava a empurrar o chamado “fluxo” da Cracolândia. Era a já conhecida “limpeza”, que acontece três vezes por dia nas ruas do centro onde rola o consumo de crack e que consiste, basicamente, em dezenas de guardas em linha enxotando as pessoas da onde estão e confiscando os pertences que quiserem. Isolada a área, chega o caminhão dos jatos de água, apelidado pelos próprios trabalhadores do serviço de “Cata Mendigo”. Pois bem, era fim de tarde e esse processo mais uma vez começava, só que a Marilu* ainda tinha um trago no cachimbo que o vento não deixava acender. Não pensou duas vezes: ali mesmo, do lado da GCM, se enfiou entre as pernas de outra usuária, a Catarina, que estava de saia e que começou a rir na hora, fazendo piada como se estivesse ganhando um boquete. Envergonhados, os guardas enfileirados ouviam calados as brincadeiras da mulherada que pulava em volta.
Marilu contou que está feliz porque casou de novo e quer engravidar. Estufando o peito, disse que o marido não a deixa fazer programa – o que significa que ele sustenta o consumo que ela faz de pedra. Era a mesma pessoa que a tinha espancado semanas atrás. “Você quer mesmo estar com ele? Não tem o risco de isso acontecer de novo?”. Ela respondeu que isso “só” tinha acontecido três vezes e, num tom de quem conta algo bom, explicou que ele faz isso porque gosta demais dela e “tem ciúmes até de homem feio”. “Isso só vai parar quando a gente sair daqui, é o crack que faz isso”, disse Marilu, que em seguida mudou de ideia: “Não, não sei se é o crack, não”.
Há alguns metros dali, Geraldo observava o fluxo e pelo movimento dos seus lábios lia-se: “Isso aqui é o Vietnã”. Geraldo queria matar o companheiro de quarto quando ele voltasse da internação no Pronto Socorro da Santa Casa. “Recebi ele super bem, emprestei toalha, sabonete, dei uma pedra. Mas ele roubou meu pacote de cigarros pra semana toda. E caiu sozinho na escada”, narrou. O porteiro do prédio viu a queda fatídica que, além de causar um traumatismo craniano, foi coroada com uma chuva de eight pra tudo que é lado, escancarando o furto que ele tinha acabado de fazer. Prosa pra cá, prosa pra lá, no fim das contas Geraldo já estava convencido que a queda da escada tinha sido obra da justiça divina. “Quando ele sair do hospital vou até receber ele de novo no quarto”.
Naquele dia Lua completava 48 anos. Diferente de outras vezes, agora estava limpa e arrumada. Começou a conversa contente ao falar do aniversário mas aos poucos foi entristecendo: “Combinei de almoçar com a família, mas não dei conta porque passei a noite na diversão. Inventei uma desculpa e eles vão entender, mas estou decepcionada comigo”. Ao ser perguntada sobre a tatuagem estampada na testa, ficou animada de novo. Fez com um hippie na praia. “Tinha um monte de gente se tatuando e eu pedi uma na testa. Impressionei todo mundo”, se orgulhou. E se orgulhou mais ainda ao contar nos dedos os oito netos que têm e que sempre visita. “O mais novo, de 19 anos, me chama de Vó Doidona”, sorriu.
*Os nomes são fictícios, foram alterados por preservação e privacidade.
A seção Fragmentos do fluxo traz relatos, recortes daquilo vivido em Campo pelos redutores do É de Lei. Não consiste em uma descrição da Cracolândia ou do trabalho de redução de danos que fazemos na região, mas em anedotas do cotidiano que ilustram a multiplicidade e singularidade das muitas vidas e realidades que circulam ali.
Dedicamos essa seção a Marcelo dos Santos Clemente, mais conhecido como Dr. Marcelo. Jovem de origem humilde e formado pela USP, foi um dos poucos médicos a trabalhar diretamente com os usuários de crack no centro de São Paulo. Muito querido entre a população em situação de rua da região, morreu subitamente aos 27 anos em 2011.