Entre usuários e ativistas, Observatório de Drogas e Direitos Humanos é inaugurado

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Por Gabriela Moncau

Vozes da Rua

“Estou na rua há 16 anos. Aprendi a compreender o povo de rua, seus perrengues e suas mazelas, nessa longa caminhada. Dizem que é um país livre. Mas não há democracia”. A voz de Dino José, poeta, ecoou no microfone que tirava da rotina a Praça Júlio Prestes, no centro de São Paulo. Ali, ao lado do desativado trilho de trem, perto do lugar comumente usado como banheiro pela população em situação de rua – já que não tem nem sinal de banheiros públicos – o cenário foi tomado cangas, cadeiras, panfletos, telão, música, roda de samba, projeções e debate. O lançamento do Vozes da Rua – Observatório de Drogas e Direitos Humanos reuniu mais de 100 pessoas no sábado ensolarado do 22 de agosto.

A ideia do observatório surgiu há mais de um ano, no contexto de mais uma das tantas investidas violentas do Estado na chamada Cracolândia. Como resposta à ação da polícia com bombas, bala de borracha e prisões naquele janeiro de 2014,  movimentos sociais, usuários e trabalhadores se reuniram. Perceberam que, mais do que trocar entre si as denúncias e experiências que todos passam cotidianamente, seria fundamental criar uma ferramenta para amplificar as vozes que estão nas ruas.

Assim, o site recém inaugurado é uma iniciativa que junta mais de uma dezena de coletivos e que visa ser um espaço para a publicação livre e aberta de denúncias de violação aos direitos humanos, principalmente relacionadas à questão das drogas, além de servir como um instrumento de articulação política para reagir às aos problemas que serão visibilizadas.

“O povo de rua é o elo mais fraco da corrente. Nós temos voz e poder que às vezes nem sabemos que temos”, define Dino, que compartilhou o debate de abertura com Rogério Guimarães, com quem frequenta o Centro de Convivência É de Lei, o defensor público Raul Nin Ferreira, os antropólogos Rubens Adorno e Taniele Rui e a socióloga Vera Telles.

Para Raul Ferreira, do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, vivemos todos sob uma violenta guerra e a população em situação de rua é, entre todos os que tem seus direitos negados, os mais sem direitos. “A guerra às drogas não é contra substâncias, como o nome faz parecer, mas contra pessoas”, ressalta. “O observatório pode ajudar, ao sistematizar relatos, problemas e denúncias, a dar um panorama estrutural dos problemas que vivemos”, caracteriza.

“Tenho o céu na cabeça e os pés no chão”

Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, defendeu que “a saúde pública é uma das grandes demagogias do século 21”. Apesar de ser, em sua opinião, a única política pública implementada pelo Estado brasileiro, “é na realidade um grande mercado de insumos”. “O Brasil é o segundo consumidor mundial das drogas lícitas fabricadas por laboratório”, ilustra, ao definir o controle dos corpos por meio dos medicamentos como “a terceira onda do biopoder”. E questiona: “Como podemos pensar o uso dos psicoativos não na base do controle, mas da autonomia e do autocuidado?”

“Eu sou Manoel. Tenho o céu na cabeça e os pés no chão. E tenho um pouco de boa vontade para continuar caminhando”. A frase foi escutada por Rubens em uma das pesquisas que realizou nas ruas de São Paulo. “Temos sujeitos e que têm autonomia. Mas não têm lugar. Nem direitos”, assinala: “O observatório é um passo para criar atenção, cuidado da saúde, construído a partir das pessoas que estão entre o céu e a terra e que tem boa vontade”.

“Eles roubam nossos direitos e dizem que os ladrões somos nós”

O momento para o lançamento do Vozes da Ruanão podia ser mais propício. Além do simbolismo da proximidade dos 11 anos do Massacre da Sé e portanto do Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, acontece num contexto de clima tenso nas ruas do centro. “A GCM [Guarda Civil Metropolitana] está agindo cada vez mais com poder de polícia. Com práticas como a de não deixar as pessoas ficarem paradas, de confiscar seus pertences”, descreve Taniele Rui, autora do livro Nas tramas do crack, para quem “a rua produz política, e traz perspectivas para entender a dinâmica do Estado e dos governos, os maiores violadores dos direitos humanos”.

Para Taniele, a temática da rua está pautada na ideia da urgência. “Tudo parece ser feito às pressas, sem planejamento. Existe muita descontinuidade nos programas e isso traz consequências sérias”, aponta, exemplificando com sistemática demissão de funcionários que já criaram vínculos com a população, muitos dos quais expressam questionamentos aos serviços que integram. Falta de água, de banheiros: “A gente vê uma série de humilhações que acontecem em níveis elementares, corporais”. “Eles roubam nossos direitos e dizem que os ladrões somos nós”, resume Rogério.

Taniele Rui encerrou sua fala com um relato que escutou recentemente na Cracolândia. Uma mulher comentou que queria estar com um celular na mão para registrar a cena que viu, “porque parecia cena de filme”: “Eram sete guardas com fuzil confiscando carroças. Eu falei pra GCM ‘vocês têm que parar para pensar. A prefeitura transformou vocês em ladrões’”.

Quebrar os consensos em torno da temática da política de drogas e da situação de rua. Esse é, para Vera Telles, um dos principais objetivos do Vozes da Rua. “Uma ferramenta para ampliar nossos campos de referências, trazer questões para a gente pensar o que é liberdade”, resume.

Apesar da longa caminhada na selva de pedras, Dino diz que há pouco tempo se declara um “homem de rua nato”: “E um homem de rua não pode ignorar outro homem de rua”. “A rua não me endureceu a ponto de não olhar nos olhos do outro”, conta. “Essas pessoas não precisam de regras, leis, castigo ou repressão. Precisam de apoio, atenção. Não há outra solução que não seja amor”, sintetiza. “Por isso nós lutamos. Somos guerreiros. E guerreiros não fogem da batalha”.