“A Cracolândia é o chão dos sem chão. E eu cuido dos pés que pisam ali”, conta enfermeira

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Por Gabriela Moncau, para Vozes da Rua

Fotos de Giorge de Santi

“A mente começa a entrar num sofrimento por causa de tudo o que você passou na vida. A maneira como as pessoas te olham, te recebem, e aí você começa a consumir a pedra e a andar, latejando essa dor”, falou Rosana* um certo dia para Agostinha, trazendo uma das reflexões que embasariam o projeto Por onde andei – pés, por que me trouxeram aqui? que a enfermeira mineira busca construir hoje na região da Cracolândia, no centro de São Paulo. Rosana é travesti, usa crack, fazia programa na região da rua Augusta e é soropositiva. “Você vai fumando e caminhando, perde a noção do tempo e da vida, se martirizando com as lembranças. Enquanto você anda, vai abrindo as feridas no pé. É como se essas feridas aliviassem a dor da mente, como se a dor descesse para os pés”, descreveu: “Depois a dor passa para o coração. E vêm as lágrimas… Você chora, chora, chora. Aí você olha para os pés e as feridas estão mais rasas. É quando você começa a se reconhecer e ver que vale a pena viver”.

“Rosana tem hoje as marcas do pé, mas também a recomposição da vida”, sorri discretamente Agostinha Francisca de Oliveira, que ao longo de seus 59 anos já trabalhou com diferentes setores sociais. Populações indígenas, campesinas, portadores de hanseníase, passou pela periferia de Brasília, pelo fundão da zona leste paulistana e desde 2010 veio, por meio da Associação Saúde da Família, acompanhar os agentes de saúde no centro de São Paulo.

O corpo fala

“Quando comecei a trabalhar na região central fui entendendo os perfis das pessoas, as malocas que antes eram bem definidas, sabia quem era quem. Mas nos finais de semana percebia que chegava outro grupo de pessoas, geralmente cobertos, só com os pés de fora. Pés muito marcados. Quem são essas pessoas? ‘É o pessoal da Cracolândia’”, relata. Foi quando começou a ficar atenta aos sinais dos corpos.

As fissuras, os ferimentos, a sujeira, a cor, as camadas, as marcas, a maneira de andar. “O pé é um elemento que realmente identifica. Observando é possível saber mais ou menos o tempo que a pessoa está lá, se o camarada ficou andando a noite toda, se é um usuário eventual que chega lá calçado e no decorrer do dia se perde e fica descalço. É interessante ver também os nossos pés enquanto trabalhadores, os pés das pessoas que chegam lá por exemplo das igrejas, da polícia, do pessoal que vai fazer a limpeza, do pessoal que está na função, na disciplina. Os pés dizem muito”, narra Agostinha. 

A partir do cuidado dos pés das pessoas que frequentam a Cracolândia, Agostinha busca estabelecer um vínculo e, com a escuta e o alívio físico, influenciar numa dinâmica de cuidado e conhecer os sujeitos que compõem a complexa dinâmica social da Cracolândia. O projeto Por onde andei – pés, por que me trouxeram aqui? inclui também o registro dos pés, feito pelo fotógrafo Giorge de Santi. “As imagens visam suscitar a reflexão e a discussão sobre as histórias e o contexto, para além do consumo do crack. Chamar atenção de que estamos falando de pessoas vivas e reais” explica o powerpoint que Agostinha preparou para difundir o projeto, feito sem financiamento.

“O pessoal chega mais na sexta-feira. Quando é sábado e domingo tem muita procura de curativo no pé. Aquele recém chegado às vezes fica cheio de bolha. E aqueles que já estão há tempos… tem um garoto por exemplo que eu olho a planta do pé e não sei o que é sola ou asfalto”, relata a enfermeira. Na linha de cuidado com esses sujeitos, todos os dias da semana e finais de semana alternados Agostinha está lá, sentada num banquinho, disponibilizando o cuidado com os pés, limpando, hidratando, massageando, conversando.

 

Faculdade de experiências de vida

Recentemente, ao som de músicas andinos na praça Júlio Prestes, um homem que usava crack começou a dançar e se aproximou de Agostinha, dizendo que tinha uma mensagem de deus. “Como chama o lugar que você trabalha?” “Cracolândia”, ela disse. “Não use esse nome, é ruim. Você trabalha é numa faculdade de experiências de vida”, ele definiu.

“Eu fiquei com isso na cabeça” conta ela. “Acho que é verdade, todo dia aprendo. A despir de valores de julgamento, a escutar, a refletir sobre histórias complexas de vida”. Outro dia chegou um garoto de 17 anos pedindo que ela cuidasse da ponta do seu dedinho do pé, que machucou jogando bola. “Você tá querendo virar um gibi de tanta tatuagem”, ela brincou, e enquanto fazia o curativo pediu que ele contasse a história de cada uma delas. Uma tatuagem era o nome da sua mãe biológica. O coringa era aquela “que a polícia teme”. A carranca na perna para proteção. E a marca de tiro no joelho? “Foi quando eu enfrentei a Rota”.

 Por que você enfrentou a Rota?

 Porque eu era do tráfico. Antes dos ciganos me adotarem, né? Me envolvi quando eu tinha 8 e quando eu tinha 12 anos já era patrão – o garoto estufa o peito, orgulhoso.

 Patrão? Você tem mansão? Avião?… Esses são os patrões. Você já ouviu falar de Pablo Escobar?

– Não.

– Ele era patrão. Com 8 anos o filho dele estava brincando, estudando, passeando na Disneylândia. E você? Estava tomando tiro da Rota.

– Não. Não sei quem é esse aí. Mas o Fernandinho Beiramar é patrão.

– Fernandinho Beiramar está preso.

– …

– Como é ser do movimento?

– Pô tia, mó adrenalina.

– Já pensou em curtir adrenalina de outro jeito? Skate? Surfe? Corda bamba, sei lá. Já pensou, nesses seus 17 anos, experimentar uma outra maneira de viver? Ir na escola, no cinema, no parque?

– Ah tia, nunca parei pra pensar não. Gostava de segurar uma arma na mão. Mas agora eu saí do tráfico.

“E eu olhava para aquele menino que tinha 17 anos mas uma carinha de 15 e que tinha todo o orgulho de dizer que já matou e já enfrentou e fez e aconteceu e ele interrompeu a conversa quando eu encostei numa pelezinha levantada do dedo dele – ‘Ai tia, vai doer?’”, gesticula Agostinha, franzindo a testa: “Eu terminei o curativo e ele sentou do meu lado e ficou ali, aconchegado. Um menino. A fumaça do crack cega, faz todo mundo olhar só no âmbito “droga” e “drogado”. Enquanto não olharmos o humano, vai ser sempre assim”.

               

Chão sem chão

O que faz com que as pessoas que frequentam e vivem na região da Cracolândia escolham esse lugar para estar? “’Ah, está ali porque quer’. Quantas vezes a gente não escuta isso? Mas como ocorrem as políticas públicas, por exemplo, para o camarada que sai da prisão? Quase todos ali já passaram pela prisão”, argumenta a enfermeira. “E nós, enquanto povo negro, que nossa situação desde a escravidão nunca foi resolvida?”, complementa, citando um estudo da professora Sônia Barros sobre um censo psicossocial dos moradores de hospitais psiquiátricos de São Paulo sob uma perspectiva racial.

“Foucault diz que séculos atrás, quando os navios pegavam os ‘insanos’, eles retiravam aquelas pessoas de um chão onde elas nunca mais iam voltar e levavam para um chão onde elas talvez nunca fossem aceitas. Se fizermos um paralelo com a história da loucura de Foucault, a Cracolândia é um chão dos sem chão”, define Agostinha. “Estou cuidando do pé de um camarada que acabou de sair da prisão. Eu pergunto ‘e a família?’. Não, sem chance de voltar”.

Um dia outra amiga travesti olhou bem nos olhos de Agostinha e falou “Sabe o que eu sou? Preta, puta, travesti e usuária de crack. Como sou vista? Lixo, querida”. “Vejo tantas organizações do movimento negro, tantas do pessoal da diversidade sexual, tantos movimentos sociais mas só o que a gente vê na Cracolândia são os serviços de saúde, assistência social e instituições religiosas. Acho que a coisa tem que ser mais ampla”, observa Agostinha.

              

O belo no caos

Agostinha sentiu vergonha quando uma garota perguntou se ela já tinha visto o pôr do sol na Cracolândia. Apesar do tempo lá, nunca tinha reparado nele. “Eu deito na calçada, fico na brisa e vou olhando o céu azul ficando rosa, laranja, uns riscos dourados. Quando você tiver a oportunidade, olha”, falou a menina do chapéu azul. “Isso me trouxe outro despertar”, afirma Agostinha: “Enxergar as relações, a capacidade criativa, as potencialidades. Ali tem toda a cultura da violência e da miséria, mas tem também o afeto, a solidariedade, o cuidado com o outro. Você começa a perceber que ali não é um amontoado de gente, mas é um lugar que faz um acolhimento. Você vê o belo no caos. Tem um camarada que vai lá que não tem nenhum dos dois braços. Quem prepara o cachimbo para ele? Tem gente que chama aquele lugar de inferno, mas é um lugar que acolhe. Acolhe estrangeiros, acolhe a periferia, acolhe quem sai da prisão”, constata.

“Se a rua e a situação extremada é o que acolhe, o que está acontecendo? O que eu busco trazer para a gente pensar não é sobre o que ocorre com a Cracolândia”, resume Agostinha. “É o que ocorre com a humanidade”.

Gabriela Moncau é jornalista do Centro de Convivência É de Lei.

*O nome de Rosana é fictício, por razões de segurança e privacidade.