Uma escola ocupada no fluxo da cracolândia

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Ocupação secundarista potencializa relações de solidariedade

Por Gabriela Moncau

Ainda eram 16h e a calçada da Alameda Cleveland já tinha sido varrida duas vezes. Josué*, vulgo Ceará, já não vê sua terra há quatro anos, e só não tem mais saudade dela do que da sua filha, que lá ficou. O nome de Cristina está cravado no seu braço direito. Usa crack, trabalha com reciclagem e vive na região da cracolândia. Apesar de estar há três dias sem dormir, não parecia cansado. “E olha que a noite é uma eternidade na cracolândia”. De manhã já “deu um talento” na rua, passando uma vassoura, e pediu um balde d’água para limpar a sarjeta – balde que o pessoal da escola emprestaria tranquilamente, se não tivesse amanhecido o dia sem água.

Perto da esquina com a rua Helvétia onde o “fluxo” se concentrava, Josué estava sentado no chão com um grupo de pessoas (algumas aproveitando a sombra feita por uma carroça) e, compartilhando tragos nos cachimbos e nos cigarros eight, conversava descontraidamente. Entre cobertores, uma infinidade de objetos espalhados pelo chão: smurfs de plástico, pilhas, celulares, baterias, fios, cintos, sapatos. “O lixo é muito precioso pra gente. Só de mexer no saco a gente consegue saber pela textura e pelo barulho se tem alguma coisa interessante”, explica Fernando, dono da carroça – que ele conseguiu recuperar no depósito da prefeitura depois de meses que ela havia sido roubada pela GCM [Guarda Civil Metropolitana]. “Mas tem gente que coloca garrafa quebrada dentro do saco de lixo só na maldade pra gente se cortar”, mostrou as mãos grossas, calejadas e com cicatrizes.

Há poucos metros dali, quem também cuidava da limpeza da calçada era uma professora de história que apoia a ocupação da Escola Estadual João Kopke, uma das cerca de 200 escolas que foram ocupadas contra o projeto de reorganização de Alckmin (PSDB).

Um homem passou pela calçada distribuindo folheto que anuncia a mudança de endereço do Bom Prato (restaurante do governo estadual que oferece comida a preço popular) e, perguntado sobre motivo do novo lugar, disse que é porque o espaço é maior. “Mentira”, comentou Josué depois que ele se afastou. “As coisas estão saindo daqui porque a Porto Seguro está comprando todos os terrenos. Por que você acha que essa escola aqui tá na lista do plano do governo? Só não contavam que os estudantes iam ocupar”, sorriu.

“Os meninos são gente boa, eles tão certos e têm que defender a escola”, opinou Catarina, que também estava sentada na rodinha embaixo da carroça e que, segundo Josué, “é a dona da calçada. Bichinha é invocada”, brincou. Ela contou orgulhosa que foi aluna da EE Fidelino Figueredo Professor, também ocupada, na Santa Cecília. Apontando para o portão da escola enfeitado de faixas, Josué diz que sempre que dá, os estudantes dão comida para eles. “E a gente também ajuda na proteção deles, na luta deles”, completou: “Outro dia a gente viu uma menina chorando porque tinham roubado o celular dela. A gente foi atrás para descobrir quem tinha sido e trouxe o celular dela de volta. Todo mundo aqui tem que correr pelo certo”.

Taíres  Pereira tem 16 anos e estuda na Kopke desde a sexta série. Não dorme dentro da escola, que está autogestionada pelos estudantes desde o dia 16 de novembro, porque a mãe não deixa, mas todo dia está lá. Depois de mostrar a escola, as cartolinas com as regras de funcionamento da ocupação, os grafites recém pintados nas paredes em uma atividade com um coletivo da Cidade Tiradentes, afirmou que não vão desocupar até o governo cancelar oficialmente o projeto que pretende fechar ao menos 93 escolas. “Quero continuar estudando aqui”. “Algumas organizações, como a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), querem que os estudantes desocupem, mas não somos representados por nenhuma entidade estudantil e sabemos que ainda não conquistamos o que a gente quer. Não basta o Alckmin anunciar que suspendeu, adiou a reorganização. A gente quer que cancele. E vamos manter as ocupações até o fim”, afirmou. “Não tem líder. A gente tem representação no Comando das Escolas Ocupadas, mas é rotativo, cada vez vai uma pessoa”, exemplifica.

Cuidando do portão da escola, Caio Singer Block (nome artístico criado naquele momento) rascunhava sua primeira letra de rap. “Estamos na luta por uma geração / com paz, justiça e outra educação (…) / Estão querendo tirar a minha escola / mas não tem nada disso, vou fazer nova história / Isso tudo muda o ponto de vista / com novas ideias e pensamento anarquista”. O garoto de 15 anos disse que vai passar o natal na ocupação: “Vamos fazer um banquete”.

Taíres conta que os estudantes sempre conviveram bem com as pessoas que frequentam a cracolândia, “todo dia a gente passa e se cumprimenta, troca bom dia”, mas que a ocupação tornou a relação mais próxima. “Outro dia a gente estava no portão cantando umas músicas e eles chegaram e começaram a batucar nas garrafinhas, ficou todo mundo cantando junto”, relatou.

Fernando botou sua garrafa no chão para mostrar o capricho que teve ao fazer seu cachimbo. “Não é só porque a gente mora na rua que não faz as nossas coisas bem feitas”. Josué, então, mostrou a resina que fica ali depois que fumam, comentando que uma boa medida de redução de danos seria conseguir colocar, além de uma piteira para não esquentar e machucar os lábios, algum tipo de filtro “para amenizar o tóxico da fumaça”. “Outro dia botei um pedaço de pano branco na ponta do cachimbo e percebi que ele ficou amarelado depois. A gente podia pensar em como fazer um filtro, como tem pro cigarro”, refletiu.

Do lado deles, dormia um rapaz enrolado num cobertor. Acima do olho, dois bandeides mal conseguiam tapar o sangue de um enorme corte na sobrancelha. “Nessa madrugada, na rua Guaianases, os polícia pegaram ele e sentaram o pau. Ele chegou aqui sem camisa todo ensanguentado de manhã. A gente deu uma roupa e ele está dormindo desde aquela hora, mas precisa limpar esse machucado senão vai infeccionar”, descreveu Catarina: “E olha que isso não é nada perto do que a gente passa aqui”. Coincidência ou não, enquanto o irmão de Catarina era espancado por policiais militares na noite anterior, outro tanto de PMs na mesma região da cidade reprimiacom bombas, spray de pimenta e até tiro para cima a manifestação em apoio à luta dos secundaristas. A conversa era essa quando passa um caminhão da prefeitura abarrotado de objetos e móveis como cobertores e cadeiras. “Olha o rapa aí. Passam três vezes por dia e não tem ideia com eles. Hoje levaram meu colchão”, falou Catarina, com naturalidade.

Com uma marmita na mão, uma bermuda justinha e os pés descalços, um homem interrompe sua caminhada pela Cleveland para saudar os estudantes. “Aaaai a-do-ro! Tem mais é que derrubar esse recalcado do Alckmin, toda força pra vocês! Wu-hu! Fica de olho hein molecada, não dá pra cair nessa aí de suspensão, tem é que ter a certeza no diário oficial e papel passado que tá cancelado! Vocês ar-ra-sam! Ai, a-do-ro!”, gritou bem humorado, já indo embora.

Gabriela Moncau é jornalista do Centro de Convivência É de Lei.

*Nomes foram alterados, por questões de privacidade e segurança.

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