Boletim É de Lei – Edição 2

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Nesta segunda edição de seu Boletim, e sob o calor das manifestações da Marcha da Maconha, o É de Lei dá sua opinião sobre a legalização da substância. Traz ainda outros dois textos. Um sobre as relações entre cultura e redução de danos e outro que aborda as dificuldades de um convivente do É de Lei para regularizar sua situação perante a Justiça Criminal. Boa Leitura!

  • Editorial: Frente as manifestações em prol da legalização da Maconha, É de Lei dá sua contribuição para o debate.
  • Cultura e Redução de DanosComo práticas artísticas e culturais podem contribuir com a redução de danos? Isabela Umbuzeiro relata experiência do Ponto de Cultura É de Lei. Por Isabela Umbuzeiro
  • Rolê TiraçãoComo esperar que um ex-detento, sem emprego, estigmatizado pela sociedade, possa pagar multas que chegam a R$5 mil para ter direito a votar e trabalhar com registro? Por André Contrucci

(O Boletim É de Lei é um periódico online que trata de temas relacionados à redução de danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas e às atividades da organização. Para contato, comunico.edelei@gmail.com)

Editorial: Legalização da Maconha e Redução de Danos

O descrédito da “Guerra às Drogas” e a legalização: paradoxo dos tempos

O debate acerca da descriminalização e da legalização da maconha ganhou novos ares nos recentes anos. Há pouco mais de uma década, em 2001, a então apresentadora Soninha Francine – alguns devem se lembrar – foi demitida da TV Cultura por afirmar em entrevista que usava a erva. Tanto a demissão como a superatenção dada pela Revista Época, com outdores destacando a frase em tom de confissão (“Eu fumo maconha”), parecem expressar que os tempos atuais são um pouco distintos daqueles do início do século. Mas não completamente. Em 2005, o É de Lei participou de um dos embriões da Marcha da Maconha, a Rede Verde. Cerca de 50 pessoas levantaram a bandeira da liberação, ainda fortemente taxadas de marginais e criminosas. Em 2008, a Justiça proibiu o evento em nove de dez cidades brasileiras, afirmando, na maior parte dos casos, tratar-se de apologia. Nos anos subsequentes, a marcha ocorreu com algumas milhares de pessoas. Este ano, realiza-se em mais de 20 cidades, entre 20 de Abril e 21 de Junho. De lá para cá, a opinião da maioria da população não mudou substancialmente. Em 2006, 18% eram favoráveis à legalização (Datafolha); hoje, são 19% (Expertise). Mas mudou um pouco o trato. Sintoma disso é que a maioria dos brasileiros (57%) passou a apoiar seu uso para fins medicinais. Primeiramente, há que se definir o que entendemos por descriminalização e legalização. Em geral, o primeiro termo refere-se à descriminalização do seu uso,. O segundo termo costuma referir-se à descriminalização tanto do uso como da produção e da venda, envolvendo também a sua regulamentação.
Muitos países do mundo descriminalizaram o uso de formas diversas e alguns também a produção e comercialização. O livre plantio segue ilegal, mas já sem sanções penais para o usuário em Portugal, Espanha, Holanda, Países Baixos, Argentina, Equador, alguns estados do EUA, entre outros casos. No Uruguai, como foi amplamente noticiado, foi legalizada. Do ponto de vista do usuário, a situação mudou um pouco no Brasil a partir de mudança na legislação sobre drogas em 2006. Os famigerados artigos 12 e 16 (da Lei 6.368, de 1976), foram substituídos pela lei 11.343, que afirma: “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização […] será submetido às seguintes penas: I – Advertência sobre efeitos das drogas; II – Prestação de serviços à comunidade; III – Medida educativa de comparecimento ao programa ou curso educativo.” No entanto, a despeito de as sanções previstas terem se tornado mais brandas, um dos cruéis detalhes está no parágrafo 2 do artigo: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.Pois, se há margem para interpretação do juiz, há margem para a penalização mais intensa de pobres, negros e moradores de favelas. E, neste país, há também margem para interpretação do policial que realiza o flagrante. Ou seja, margem para violência, abusos e injustiças. Pesquisa com mais de mil casos de prisões no Brasil aponta estatisticamente que “a maioria dos condenados por tráfico nas cidades pesquisadas têm papéis “descartáveis”, ou seja, estão localizados nos níveis hierárquicos inferiores, ligados aos elos mais fracos da estrutura do comércio de drogas ilícitas” (BOITEUX, 2009, p. 29). O É de Lei trabalha há 15 anos com redução de danos do uso de drogas no Centro de São Paulo. Característica deste tipo de trabalho é o trato não criminalizatório das drogas. Em primeiro lugar, entende-se que acabar com as drogas é uma utopia ingênua, infactível. Em segundo lugar, entende-se que a condição do usuário como delinqüente só dificulta o trato do problema. Afinal, as típicas políticas públicas que encaram as drogas como “questão de polícia” acabam dedicando-se mais à repressão e ao encarceramento do que efetivamente ao trato da saúde dos usuários.
Em todo o mundo, a “Guerra às Drogas”, inaugurada pelo presidente norte-americano Nixon (1969 – 1974), está em cheque, mas não extinta. No México, a política de repressão deixou cerca de 60 mil mortos em seis anos. Na Bolívia e na Colombia, para acabar com plantações de coca, os governos praticaram, durante anos, a “fumigação”, onde, através de aviões, laçam venenos sobre as plantações, de modo a matar as plantas de coca, mas também toda a agricultura local. Isso devastou não apenas as plantações de coca, mas também o modo de subsistência dos pequenos agricultores locais. (ver “Cocaine Unwrapped” (2011)). No Brasil, operações como a “Sufoco”, deslanchada pelo governo de São Paulo em 2012, seguem tentando resolver o problema no porrete, sem nenhum sucesso (Ver “Notícias de Uma Guerra Particular” (1999)). Para se ter uma idéia, no Brasil, entre uma população de 574m mil encarcerados, 146 mil são por tráfico de entorpecentes. Ou seja, 25%. Destes 146 mil, 57% eram réus primários. Em Brasília, a droga mais incidente em processos por “tráfico” tem sido a maconha, com 46,9% dos casos, e no Rio, a segunda, atrás da cocaína (Boiteux, 2009). Naturalmente, tais fatos traduzem-se em presídios lotados, tornando-os cada vez piores e mais violentos, contribuindo mais para o agravamento do problema do que para sua sansão. Por estes e outros motivos, organizações internacionais, que evitavam tratar o tema com objetividade, têm mudado de postura. No ano passado, a OEA (Organização dos Estados Americanos), sugeriu, de forma inédita, uma política de “despenalização” em relação às drogas (Relatório “Scenarios for the drug problem in the Americas“).
Frente este quadro, o É de Lei é a favor da legalização da maconha desde já, e, por princípio, das outras drogas, no seu devido tempo. Esta legalização deve ser acompanhada de regulamentação, afastando a erva do fetiche do mercado e do consumo problemático. Defende a produção em escala individual e local, o controle de qualidade, campanhas de conscientização, e a proibição da venda para crianças e adolescentes. E defende que o Estado arrecade impostos frente produções maiores, de forma a subsidiar o tratamento e outros investimentos sociais. Em fevereiro deste ano, o Senado começou a discutir uma proposta que legaliza o consumo da maconha para todas as finalidades. A iniciativa partiu de um gestor da área da saúde, que publicou o texto no site do Senado e obteve apoio de 20 mil pessoas. No entanto, sabemos que o caminho é longo. Como apontado, apenas 19% da população é a favor da legalização da erva. Naturalmente, para que o Congresso Nacional aprove semelhante medida, vai esperar o apoio da população, como ocorre com outros temas polêmicos, com o aborto. E vale notar: entre os que afirmam nunca ter fumado, apenas 12% são a favor da legalização. Entre os que já fumaram, o número salta para 38%. Ou seja, quanto menos contato com a realidade debatida, mais conservadora e mitificada tende a ser a opinião da população. Não há mágica. O caminho é o da luta, através do dialogo franco, claro, pragmático e aberto. E este sábado, 26/04, Marcha da Maconha

Cultura e Redução de Danos

Como práticas artísticas e culturais podem contribuir com a redução de danos Por Isabela Umbuzeiro

Para além de ações específicas, a redução de danos aponta para uma perspectiva ética composta por ações transversais. Uma ética que  aposta no cuidado sem tutela. Um olhar para a questão das drogas que aceita seu uso como uma escolha possível para cada um. Ao tomarmos esse uso como uma escolha é necessário que se assuma a responsabilidade por ele. Responsabilidade que afeta aquele que usa e seu entorno. Para isso, muitas vezes precisamos de espaços de convívio e relações vinculares para nos apropriarmos dos nossos modos de uso e compreender como essa dinâmica afeta nossa relação com o mundo, com o que produzimos e com o outro, ampliando assim nossas possibilidades de fazer escolhas mais saudáveis e éticas. O Centro de Convivência É de Lei é um desses espaços. Desde 2010 se tornou também um Ponto de Cultura, através do Programa Cultura Viva do MINC. Desde então, realizamos ações artísticas e culturais abertas aos conviventes e à comunidade em geral.
No início desse processo as propostas tinham como temáticas questões sociais ligadas a ao uso de drogas e à situação de rua.  Aos poucos fomos percebendo que tal postura poderia reiterar estigmas vividos cotidianamente pelos participantes. Além de usar drogas ou estar em situação de rua, qualquer sujeito tem muitas características, habilidades e interesses. Com a imposição dessa temática (na melhor das intenções)  acabávamos por tornar esse sujeito objeto de um discurso ao invés de afirmar sua posição enquanto produtor de discursos. Certo dia, recebemos um jornalista no Ponto de Cultura, e, em um dado momento ele nos solicita que contemos um caso de sucesso. Ficamos nos perguntando o que aquele jornalista entendia por sucesso e devolvemos a ele a pergunta: alguém que deixou as drogas ou saiu da rua. Sucesso, nessa perspectiva, é a inserção nos sistemas de produção e consumo de bens e de valores, em modos de vida “normais”. Ao definirmos uma pessoa como usuária de drogas ou moradora de rua a reduzimos a apenas um traço de sua história. Olhar que se define em termos de uma falta, olhamos aquilo que ele não é e deveria ser, numa imposição autoritária de um modo de vida ideal ou socialmente aceito.
Ora, somos um Ponto de Cultura, para nós sucesso é quando produzimos uma intervenção artística de forma coletiva e reconhecida culturalmente. Se a arte  vira instrumento para “salvar” alguém das drogas ou da miséria deixamos de reconhecer e afirmar toda a riqueza cultural que cada pessoa traz, assim como invalidamos seu modo de vida como uma escolha. A partir dessa perspectiva crítica passamos a produzir arte com a contribuição singular de cada participante, com temáticas que habitam a imaginação de cada um. Independentemente de diagnósticos de saúde ou sociais ali somos todos produtores de intervenções artísticas e enquanto produzimos, somos reconhecidos culturalmente em novos papéis sociais. Nesse sentido, as atividades artísticas como práticas que compõe estratégias de redução de danos parecem habitar um paradoxo: quanto mais autônomas elas se dão, ou seja, quanto mais nos preocupamos em fazer arte ao invés de usá-la para outras causas, mais enriquecemos esse conjunto de estratégias.

 Rolê tiração

Como esperar que um ex-detento, sem emprego, estigmatizado pela sociedade, possa pagar multas que chegam a R$5 mil para ter direito a votar e trabalhar com registro? 


por André Contrucci

“É sempre assim na Zona Sul: ladrão bom vai embora cedo para a permanência do sistema carcerário; É a decadência, a fraude na lei do mais fraco existente, na mente de quem anda erradoFalta emprego, para aqueles que pegou pesado”

Manhã do dia 29 de julho de 2013. “Japonês” chega atrasado no centro. O caminho desde sua quebrada é longo, o troco pro busão ele conseguiu emprestado. Ele se encontra com Willy, redutor de danos, que vai acompanhá-lo em mais uma tentativa de regularizar seu título de eleitor. O destino de hoje é a Vara de Execuções Criminais (VEC) de Guarulhos. Motivado a conseguir um emprego registrado e não voltar para o crime, os dois se apertam em mais uma condução. Willy percebeu a importância de acompanhar o convivente ”japonês” nesta empreitada a partir das aulas que assistiu no curso “Drogas e Direitos Humanos”. Não bastava ter acesso aos procedimentos, ter o endereço dos serviços e horário de funcionamento. Outras barreiras pareciam impedir a resolução de pendências como esta. E isso se confirmou desde a primeira vez que eles estiveram no fórum da Barra Funda: longas filas, informações desencontradas e olhares preconceituosos para ambos. Cabe notar que o apelido “japonês” contrasta com sua pele escura, marcada com tatuagens de cadeia. Eles chegam na VEC de Guarulhos e começa o empurra empurra institucional: da VEC para o fórum local. De lá para a delegacia. Da delegacia para o CDP 2 (Centro de Detenção Provisória), onde “japonês” cumpriu pena. Voltar para aquele lugar não é fácil. No CDP eles escutam que precisam voltar ao fórum da Barra Funda, o mesmo em que começaram toda a epopeia algumas semanas antes. E não é só, para regularizar a situação é preciso pagar, em dinheiro, uma multa de mais de duzentos reais. O sentimento que toma conta de “japonês” é um mistura de revolta, frustração e cansaço. Willy tenta acalma-lo e incentivá-lo, fala sobre a importância de insistir, enfrentar estes obstáculos e lutar. Após um longo dia sem nenhum resultado positivo eles voltam para o Centro de Convivência É de Lei. Este episódio, se isolado, poderia ser apenas mais um exemplo da ineficiência de órgãos públicos envoltos em burocracia e má vontade de alguns funcionários, mas não é. Como diz “japonês”, isso é tiração e acontece todos os dias com a população periférica. É o que podemos chamar de racismo institucional, que revela um Brasil de castas, que coloca cada um em seu “devido lugar”. O direito político de votar e o direito ao trabalho são inalienáveis. No entanto, mesmo após o cumprimento da pena de reclusão, estes direitos ficam “suspensos” enquanto o réu não pagar a pena em dinheiro, estipulada pelo juiz. De acordo com o advogado Raul Ferreira, colaborador do É de Lei, estas penas em dinheiro são mais um resquício da perversidade do código penal. Como esperar que um ex-detento, sem emprego, estigmatizado pela sociedade, possa pagar multas que chegam a R$5 mil para ter direito a votar e trabalhar com registro? Que opções lhe restam para arrecadar essas quantias? Ao invés de facilitar a chamada reinserção social destas pessoas, o Estado parece impor barreiras, distanciando o ex-detento da possibilidade de um trabalho formal. Preto, pobre e jovem, “japonês” cumpriu sua pena e jurou para si mesmo que não voltaria para o crime. Atualmente em situação de rua, ele está tentando recorrer, com auxilio da Defensoria Pública, para que não tenha que pagar tal valor. Enquanto isso, ele tem se virado como pode, fazendo bicos que mal lhe rendem um sustento na rua. Willy e a equipe do É de Lei tem acompanhado seu caso, buscando auxiliar, estar junto, torcendo para que sua força de vontade seja maior do que a burocracia, do que as barreiras estatais e do que as estatísticas que tentam moldar seu destino.

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